Por LÚCIO FLÁVIO PINTO
Logo que assumi (por curtíssimo período, de três meses) a chefia de reportagem de A Província do Pará, em 1971, decidi dar um curso de jornalismo para recrutar novos repórteres. Três foram aprovados nessa iniciação, desenvolvida na própria redação do jornal: Ademir Silva, Guilherme Augusto Pereira e Raimundo José Pinto (José Augusto Potiguar tomou outros rumos, tornando-se procurador da República). Meu irmão estava então com 20 anos, dois anos mais novo do que eu. Ficaríamos juntos na profissão pelos 18 anos seguintes.
Ele me sucedeu como correspondente de O Estado de S.Paulo quando fui para a sede, um ano e meio depois. Voltei a Belém para criar a primeira sucursal regional da empresa e ele se manteve no lugar. Permaneceu quando o projeto fez água e a brilhante equipe formada foi se desfazendo. Ninguém jamais questionou a relação de parentesco: Zé se firmara por seu valor. O mesmo valor que o credenciou a ser presidente do sindicato dos jornalistas, em 1982. Quando deixei o cargo, ele foi vice-presidente de Emanoel Ó de Almeida, mas podia ter sido o meu candidato sem o risco de nepotismo. O intervalo, porém, foi importante. Nunca mais ocupei qualquer posição na diretoria, cargo de sacrifício, que só os mal intencionados (ou masoquistas) querem bisar na íntegra. Raimundo ganhou a eleição sem precisar da minha participação.
Durante 15 anos dividimos o escritório do Estadão em Belém, cobrindo o Pará e, às vezes, a Amazônia toda, para aquele que era o mais influente jornal do país (posição que perdeu, não por acaso, quando a família Mesquita, fragmentada, deixou o topo da empresa e permitiu que sua mística virasse pó). Saí em 1989, mas ele ainda ficou por dois anos, até que a base física fosse desfeita e o serviço voltasse a ser como era antes: um único correspondente, acionado pela pauta paulistana. A transformação que operamos na cobertura jornalística da Amazônia, buscando dar-lhe autonomia e paridade, virou miragem. O exotismo amazônico voltou a ser a marca da linha editorial imposta de cima para baixo.
Quando desisti de assumir a sucursal da Gazeta Mercantil em Belém, repassei-lhe o lugar, que ele ocupou com a naturalidade das outras vezes, impondo-se na função por seu desempenho, sem abandonar o seu modo discreto e afável de exercer a chefia, como um colega e igual. E sem deixar de acompanhar os fatos, como repórter, que sempre foi, nas ruas e nos gabinetes. Dedicando mais tempo ao jornalismo científico.
Em tantos anos de parceria profissional, a relação fraterna sempre foi um detalhe. Tratávamo-nos como dois repórteres, sem diferença hierárquica, sem favorecimentos. Havia respeito entre nós, admiração recíproca. Como pessoas, éramos bastante diferentes, mas uma coisa nos unia: o humor. Quando as rodas se formavam, com outros irmãos e amigos, ou mesmo estranhos, a ironia ficava solta. Ninguém estava protegido da gozação, do chiste, da maledicência inofensiva.
Posso dizer que a maior característica de estarmos juntos na mesma profissão e na mesma empresa por tanto tempo foi a de jamais imaginarmos e arquitetarmos o mal a qualquer personagem, mesmo o mais ignóbil da cena pública. Os gostos (e desgostos) pessoais nunca contaminaram nossa pauta nem se infiltraram em nossos textos. Raimundo fez o melhor dos jornalismos de 1971 até uma semana atrás, quando o câncer, que combateu durante longos e sofridos quatro anos, o derrubou numa cama de hospital, colocando-o à mercê de sua crueldade e fatalidade.
Abracei e beijei meu irmão, dividi com ele nossas lágrimas, numa intimidade rara no nosso cotidiano de trabalho pesado. Ele sempre encarou a doença com a indestrutível vontade de viver, o sempiterno amor pela vida, pela fruição da existência, a boa conversa, a mesa apetitosa, os amigos, as pessoas queridas e o jornalismo, que foi a sua paixão. Ele superou todas as expectativas, mesmo as mais otimistas, quando da sua internação, para travar o maior combate da sua vida com altivez, com muita seriedade e, ao mesmo tempo, como se estivesse dançando o carnaval pelas ruas de Belém, num bloco, com seu pareô, seu colar de flores, seu boné, sua barba e aquele jeito característico de ser Raimundo José de Faria Pinto, marca pessoal, intransferível e que vencerá todas as formas de morte. O Pintão de todos os seus muitos amigos e admiradores, como eu. Nosso patrimônio comum.
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Artigo disponível no Blog do Estado do Tapajós
2 comentários:
Lúcio, ilustre amigo:
Gosto do Pintão como gosto de um irmão. Emocionei-me com sua narrativa e lagrimei com a situação do Raimundo, meu velho amigo, aliás, de quem tive a simplicidade (dele) de acolher-me, por alguns dias, na Gazeta Mercantil, ali num prédio da Antonio Barreto. E desde o final dos anos 60 (eu como revisor, depo-is reporter e editor esportivo), portanto, quando vc foi chefe de reportagem da Provincia, já convivia com o Raimundo José. Dói-me muito a situação, nos restando a solidariedade, as orações e a força interior que vai fazer nosso Raimundão vencer mais esta.
Sérgio Noronha.
O Raimundo Pinto fez história no jornalismo do Pará. Competente, generoso, discreto e extremamente respeitado por todos- assim como o Lúcio Flávio.
Tenho muita admiração por ele, como profissional e como pessoa. E o quero muito bem.
Nunca esquecerei sua bondosa simpatia quando, há quase 18 anos, criei o Uruá-Tapera e, de imediato, fui registrá-lo junto ao Sindicato dos Jornalistas, que ele presidia na época. Ele me aconselhou a deixar passar um tempo, para ver se eu iria conseguir dar continuidade ao jornal, para então fazer o registro. Insisti. Sem querer me melindrar ou me desencantar, ele argumentou sobre a burocracia, etecetera e tal. Eu continuei insistindo. Queria fazer tudo certinho. E então ele, meio sem graça, me disse que não queria me deixar triste nem desestimulada, mas que já tinha visto um monte de iniciativas iguais à minha, que ninguém conseguia levar adiante, que eu iria gastar dinheiro com as taxas e me decepcionar. Eu escutei seu conselho, mas ainda assim garanti que queria tentar. Aí ele, meio irmãozão, me propôs que eu deixasse passar seis meses. E então, se o jornal estivesse circulando, que eu voltasse ao Sinjor e fizesse o registro. Topei o desafio.
Imaginem a minha cara de satisfação - e a dele também - quando fui lá, passado o prazo.
E assim o Uruá-Tapera segue nessas quase duas décadas, um verdadeiro parto a cada edição, feito nas madrugadas ou finais de semana. Para mim, Pinto é uma criatura rara, por quem eu rogo a Deus para que não sofra.
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