No blog Na rede, da jornalista Ana Diniz:
Minha amiga prova o doce, arregala os olhos e suspira. Lembranças de infância.... Um segundo depois, na segunda bocada, diz:
- Eu não devia estar comendo isso...
Minha amiga não é diabética e nem cardiopata. Não tem excessos de colesterol ou de qualquer outra daquelas coisinhas nos infernizam a vida. Ela é só uma massacrada pela sabedoria popular do século XXI.
Nos tempos antigos, manga com leite fazia mal, assim como tomar banho depois do almoço, comer marisco ou peixe de pele quando doente, ou tomar outra coisa que não fosse canja de galinha depois do parto. Uma dose de conhaque, cachaça ou vinho reanimavam o enfermo, sais de amoníaco tiravam do desmaio e uma gemada substancial recuperava as forças de quem sofria um choque qualquer.
Tudo isso era a interpretação livre das descobertas científicas de então (o uso dos sais e do conhaque é mencionado em guias de primeiros socorros do final do século XIX, por exemplo) combinada com escassez e prudência.
Hoje, a interpretação livre das descobertas coloca tudo o que é doce, massa e gordura num patamar de desconfianças. Só que este patamar tornou-se massificado e amplo demais. Não há revista que não tenha o seu “vida saudável” ou “cuide de sua saúde” ou seção assemelhada, não há site de internet que não tenha receitas light, diet, e coisa e tal, gerando uma pressão quase insuportável para quem gosta de comer.
Porque, além dos outdoors, das revistas e da televisão, sempre tem um chato na mesa para lembrar o colesterol, o não-se-que, o não-sei-como. Há gente que se policia e há gente que policia os outros.
Eu gosto de cozinhar, como milhares de outras mulheres. Penso que comer junto – dividir a comida – partilhar o pão – é coisa que distingue as pessoas humanas, porque (como Henri Sobel escreveu um dia) é solidário. E eu acrescento: é feliz. Uma mesa posta cercada de olhos brilhantes acompanhando a fumaça da sopa ou a delicadeza da salada, é um lugar redentor.
Mas, ultimamente, pessoas chegam-se à mesa e perguntam: “É frito?” ou “Tem ovo? Sabe, o colesterol...” Ou então: “Eu bem que gostaria, mas doce engorda...”
Outras cutucam o vizinho: “Olha o seu colesterol!”
Geralmente não são apenas os olhos do vizinho que perdem o brilho. Colheres baixam nos pratos de serviço, movidos pela lembrança inoportuna, talheres são cruzados porque, simplesmente, o chato da vez adicionou um travo de culpa no doce, no assado, na sopa. Em família ainda dá para silenciar o importuno, mas, em sociedade, o prazer se estraga inapelavelmente.
Essas coisas me vieram à lembrança quando olhei um título numa revista eletrônica: “Receitas para comer sem culpa”. E eu pergunto: culpa de que, meu Deus? Quem inventou essa culpa sem pecado e sem crime? Sem sequer contravenção?
Será essa uma nova forma de puritanismo? Ou de um epicurismo masoquista, em que um buraco a menos no cinto vale mais que o prazer de compartilhar uma boa comida?
Minha pobre amiga apagou as centelhas dos olhos, destruiu a recordação feliz, amargou o doce quando lembrou que “não devia”. Porque as pessoas estão carregando, agora, essa culpa sem razão, essa culpa incutida e inventada.
Se você perguntar porque “não devia”, as pessoas mostram, de um modo geral, que sabem tanto quando nossos antepassados sabiam sobre o que acontece no organismo. Alguém lhes disse, alguém as convenceu. Porque? Eu desconfio que os propósitos são bem menos nobres do que preocupação com a saúde.
4 comentários:
Nem sabem o valor de uma boa comida. Deixam de comer isto ou aquilo e pedem uma coca cola diet...ou se acabam nos Mac da vida comendo sabe-se la o que. Não comem frutas, mas se acabam nos sucos (com adoçante) cujas frutas nem sabem mesmo como foram acondicionadas. Não frequentam a mesa, comem nos quartos e nunca vão saber o valor da melhor sobremesa: esticar o almoço para a boa conversa depois das refeiçoes. Fico com a sabedoria da Ana e dos meus avós que comiam de tudo, inclusive os doces em compota (para aproveitar as frutas da época colhidas "no pé"), e só se foram la pelos noventa e tantos completamente lúcidos e diria até que com muita saúde. Desculpa eu contar aqui uma do meu avô aos 97 anos. Estavamos no almoço do dia de ano. Ele olhando a já 5ª geração espalhada pela casa disse que se fosse um pouco mais novo iria criar uma criança. Uma subrinha perguntou-lhe meio que censurando: Mas para que? E ele prontamente: para eu aprender com a criança e ela comigo.
Também gosto de cozinhar, como milhares de outras munheres, e como.
Bom dia, caro Paulo:
maravilhosa, precisa, divina Ana.
Abração.
Só depois de um AVC é que aprendi a comer de forma suadavel.
Pena que, na maioria dos casos, é dessa forma que as pessoas tomam consciência do problema e da solução.
Felizmente não tive sequelas e ganhei qualidade de vida.
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