sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Um dia do avesso


Sou uma pessoa fascinada pela fisiologia do corpo humano. E não só pelas suas funções: para mim, o corpo é um dos itens mais importantes da nossa existência. Na verdade, toda referência que temos neste mundo provém do corpo. Mesmo o nosso conhecimento mais transcendental tem como base e receptor o sistema corporal. Hoje, quero pensar com você mais profundamente sobre isto. Para alguns, pode parecer bobagem, mas não é. Nossa ficção é provada pelo próprio corpo que empregamos agora para ler este texto.
Um dia do avesso mudaria radicalmente a nossa forma de pensar e viver. A pele é o tecido mais enigmático que existe. Sob ela, permanece um mundo praticamente desconhecido. É verdade que fazemos exames disto e daquilo, porém, as imagens do nosso corpo chegam às nossas mãos como algo ainda exterior. Imagine o impacto que teríamos se em determinado dia todos nós andássemos do avesso.
Nesse dia, morreria o nosso padrão de beleza. Mulheres esculturais caminhariam ao lado de outras hoje desprezadas, mas ninguém notaria diferença. De um relance, a gente veria a vida como ela realmente é. O corpo feminino, tão valorizado do lado de fora, de repente seria sangue, músculos e gordura. Não sei se alguém conseguiria imaginar o lado direito feminino. Tem gente para tudo. Não sei se teríamos “estômago” para isso.
A gordura deixaria de ser tratada como um mito. Acabaria toda ideia de acreditar ou não acreditar que realmente podemos estar gordos ou engordando. A gordura deixaria de ser uma questão de fé. A gordura estaria brilhando diante dos nossos olhos, únicos que não mudariam nesta ficção. Imagine os grandes ajuntamentos públicos nas ruas, shoppings, praias, estádios. De uma vez por todas a gente seria convencido a fazer dieta.
Fico pensando na hora da alimentação e em todo o processo digestivo. Qual seria a nossa reação se pudéssemos enxergar a comida caindo em tempo real dentro do nosso estômago? Imagine a cena quando, depois de misturar tanta coisa, a gente ainda derramasse bastante água, refrigerante e outros líquidos sobre o bolo alimentar. Que cena! De perder o apetite, não?. Nesse dia, íamos ser mais seletivos na hora de comer.
Penso muito nos fumantes que conseguissem enxergar a desgraça que o cigarro causa. Imagine ver fumaça e fuligem enchendo a cavidade pulmonar. Imagine quantos pulmões enegrecidos seriam expostos pelas ruas. Tão sujos dessa fuligem como se estivessem untados de piche ou coisa parecida. Meu Deus, que cena terrível: ver a mucosa rósea de pulmões jovens ser baforada pela fumaça do cigarro, encobrindo veias, artérias e toda essa fragilidade da vida. O mesmo ensaio vale para o álcool e outras drogas.
Você já deve ter notado que não precisaríamos de roupa. No dia do avesso a indústria da moda entraria em colapso. Nada de saias, calças e blusas. Nada de cinto nem cinta. Seríamos exatamente o que somos. Sem truque, jeitinho ou coisa parecida. Fim da ostentação, de se achar superior ao seu semelhante.
Acredito que além dos benefícios para o próprio corpo, o maior ganho seria mesmo social. Um dia do avesso nos tornaria mais iguais. Na verdade, ainda não sei como nos reconheceríamos. Afora largura e estatura, todo mundo seria bastante parecido: coração, rins, pulmões, fígado, cérebro, tripas... Portanto, muitas das nossas vaidades cairiam por terra. Pobres e ricos seriam iguais. Irreconhecíveis. Também não sei como seria a nossa identificação. Talvez pela taxa de gordura, sei lá. Não seria pelo tom da pele, com certeza. A nossa própria idade ficaria oculta. Como identificar um corpo jovem do avesso?
E as nossas exigências “indispensáveis” como ficariam: como usar o carro? Precisaria ser mesmo automático? E os voos, podíamos viajar na segunda classe nesse dia? Como reconhecer mesmo um rico no dia do avesso? Onde guardar o dinheiro e o celular de última geração? Pense aí. Olha, seria uma revolução esse dia do avesso.
Este tipo de ensaio serve para nos ajudar a refletir sobre o que de fato somos no mundo. É fruto da imaginação, claro. Porém, é bastante real. Apesar de estarmos encobertos pela pele, somos assim mesmo agora. Estamos também sempre do avesso para o que de fato importa. É desse lado que existimos, embora façamos tantas classificações e conceitos a partir do lado de fora.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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