quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Jorra o sangue brasileiro
Semana passada atrevi-me a olhar outros mortos. Quase sempre olhamos as vítimas inocentes das emboscadas, dos latrocínios e das mortes acidentais. Eu quis olhar o outro lado. Olhei detidamente corpos de assassinos, de “monstros” e de tantos que sucumbiram transgredindo a nossa lei. E confesso que fiquei chocado. São dois, são cem, são mil. Inertes jovens no solo, detidos por um projétil certeiro no coração. Semblante de alguém que veio e foi e não sabe por quê. Matou e terminou morto. Não matou, mas morreu também.
A nossa visão de violência pode estar prejudicada. Não morrem apenas mocinhos. Bandidos morrem também. E quando morrem, espalha-se o mesmo germe, pois a lei de talião continua em pleno vigor aqui. Precisamos olhar o contexto. Não morrem só delinquentes nem cidadãos comuns do bem. Morrem também os que trabalham contra a morte. Policiais. Agentes.
Não podemos tratar a violência como algo reativo. Não podemos seguir ignorando o outro lado. A defesa de uma sociedade está em sua harmonia. Não adianta sair matando quem nos mata. Não adianta apenas revidar. Leis, penas e prisões: eis algo paliativo, intimida, mas não cura. Esconde a realidade atrás das grades. A situação brasileira é gravíssima, mas isso é contextual.
Jorra o sangue brasileiro. E sangue não tem antecedentes. Fora do corpo significa morte. Morte significa perda. O Brasil está perdendo os seus filhos. Perde aqueles que conseguiram escapar do crime. Perde precocemente outros, classificados como agentes delituosos. Isto é causa e efeito. Ação e reação. Omissão principalmente.
Nenhum estudioso de criminologia pode ignorar o massacre brasileiro. Jorra o nosso sangue, vejam alguns sangue do bem, vejam outros sangue do mal. Classificações tolas e vãs. O sangue é bom por si mesmo. No corpo é vida. Fora dele, morte. É o sangue do nosso povo que está sendo oferecido diariamente nesse altar satânico. Uma sede insaciável. Eu não posso aceitar.
Um milhão e tantos mil mortos em apenas trinta anos neste Brasil. Uma nação perdeu a vida. Quem morreu? A nossa sociedade, de todas as classes e ocupações. Bandido mata bandido. Polícia mata bandido. Bandido mata a polícia. Isto é o nosso sangue, sangue verde e amarelo. Sangue católico, espírita e crente. Jorra o sangue brasileiro, esta é única leitura.
Fico impressionado com a postura do governo brasileiro. Li recente que o Brasil economiza em segurança, mas escancara os cofres à Copa. Que desgraça esse troféu! Que loucura não começar com urgência um plano de segurança nacional. Estamos vivendo um caos. Sangue para todo lado. A insegurança domina a nação. Por que não se chama o saber acadêmico para um grande debate? O que adianta termos tantos doutores em direito se o crime é uma banalidade no Brasil? Cadê os nossos sociólogos que o Brasil não valoriza? Cadê as grandes inteligências desta nação, que a bandeira partidária mantém enjauladas em laboratórios, quando a morte está solta em nossas ruas? Eu fico indignado.
A situação brasileira é tão grave que os governos precisam criar algum mecanismo de reversão. A sociedade precisa ser chamada à consciência de seu estado de morte. Quem detém conhecimento de defesa precisa repassar isto para as pessoas. É preciso levar o debate para as comunidades e para cada sala de aula. É um plano de emergência e ao mesmo tempo uma necessidade de trabalhar essa questão a médio e longo prazo. É o sangue brasileiro que está jorrando. Não são estrangeiros que matam e morrem: é o nosso povo, sem importar se agente ou vítima, eis a leitura precisa.
Eu gostaria de poder contribuir de alguma forma na qualidade de pastor que sou. Posso utilizar os canais de mídia para isso. Tenho um programa diário de rádio e quero cooperar. Posso usar a internet. Estou utilizando este espaço no jornal. Faço isso porque, ao procurar viver a vida religiosa com profundidade, sinto-me despertado por Deus a contextualizar a situação brasileira. Em nossa igreja, tivemos dois pastores assassinados, um na famosa “saidinha” e outro ao deixar o templo. Outro jovem foi morto por causa de um celular pertinho da igreja. A violência não tem religião. Não posso me trancar numa igreja e pregar um sermão que ignore a mortandade do lado de fora. Nunca esquecerei que no primeiro culto que dirigi sendo pastor uma pessoa foi assassinada na porta da igreja ouvindo o sermão que eu pregava.
Não faço tantas classificações. Para mim, jorra o sangue brasileiro.
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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br
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