quinta-feira, 24 de junho de 2010

Ateus longevos


Biblicamente, a longevidade está associada à obediência. O primeiro mandamento-promessa tem essa conotação. Honrar os pais garante vida longa sobre a Terra. Reconhecer os feitos do Todo-Poderoso, então nem se fala: as Escrituras tecem o assunto desde o velho Gênesis até o avançado Apocalipse. Porém, curiosamente, ateus costumam viver uma boa fatia, para não dizer que alguns deles esbanjam a conta. Por quê?
Saramago, Carlos Heitor Cony e Niemeyer parecem desafiar qualquer tabela de longevidade. Para eles, declaradamente ateus, viver muito pode ser compreendido como uma prova irrefutável da não-existência da Divindade. Num ensaio raso segundo nossos padrões de julgamento, a longevidade de um ateu torna a crença teísta ainda mais paradoxal e duvidosa. Se ateus envelhecem e viram mais amargos acerca da fé, isto pode parecer para eles que estão vencendo a guerra ideológica antirreligião. Será?
José Saramago, morto no último dia 18, foi uma pedra no caminho do cristianismo. Condenou a Bíblia ao mais abjeto tratado teológico. Ridicularizou a Igreja. Usou todo o seu talento para combater a filosofia religiosa do Ocidente. 87 anos de combate à fé cristã. Agora, tendo o corpo cremado, passou rapidamente. Passou para o outro lado, segundo a criticada Bíblia. Como estará agora? Qual será sua defesa? Escreverá "Ensaio sobre a minha cegueira"? "Evangelho segundo Saramago"?
O "imortal" Carlos Heitor Cony, 84, continua escrevendo. Escrevendo muito bem, por sinal. Mas vez ou outra a pena lhe parece mais pesada que o ar. E ele faz questão de afirmar seu ateísmo. Apesar disso, segue firme. Por quê?
Niemeyer é exceção a tudo. A caminho dos 103 anos, o mais célebre ateu brasileiro não retira uma vírgula de tudo que disse. Fascinado pelo Universo, convidou um amigo astrônomo para lhe falar em seu escritório no Rio sobre os mistérios das estrelas . O mestre da curvas pesadas emociona-se ao saber que temos o mesmo carbono desses corpos celestes. Mas não permite a mínima ideia de eternidade. Qual a razão de sua longevidade?
A resposta está na mesma Bíblia: sendo Deus extremamente amoroso e longânimo, o mantenedor da vida concede longevidade a ateus para que estes possam repensar a tese. Essa é sua doutrina. Nada lhe é tardio ou extemporâneo. Essa é a justificativa que a Bíblia tem para a aparente demora do retorno de Cristo à Terra: Ele não quer que ninguém se perca. Mil anos de ateísmo lhe representam um dia. Assim faz a conta.
Saramago foi um brilhante construtor de frases. Infelizmente, não soube silenciar perante a ignorância. Não respeitou a crença de milhões de pessoas. Pessoas que têm a liberdade de crer em Deus. Gente que nada disse contra seu ateísmo sem parágrafos. Gente que respondeu ofensas com orações, afinal esse é o espírito do cristianismo.
Cony, muito mais dócil, continua nos brindando com a boa literatura. Suas curtas colunas são verdadeiros monumentos de síntese e profundidade. Lamentamos apenas que o tempo não lhe tenha despertado para a principal questão da vida: a eternidade, mãe da longevidade que o alegra.
Niemeyer ainda pode mudar. A misericórdia divina lhe é sobremaneira grande. Altaneira. Há 102 anos a graça de Deus o aguarda. Para vê-lo reconhecer que nada somos nem temos, a não ser um pálido espelho da ciência divina. Espelho que nosso nobre arquiteto tem contemplado em sua plenitude. Só falta reconhecer a origem dessa luz.
Deus não tem prazer na morte de ninguém. Deseja que todos vivam. E cheguem ao pleno conhecimento da verdade.

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RUI RAIOL é pastor e escritor (www.ruiraiol.com.br)

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