quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Je ne suis pas Charlie

Por ISMAEL MORAES, advogado

O que os terroristas fizeram no atentado da revista Charlie Hebdo é inominavelmente abominável. Não é possível dizer mais nada que o mundo inteiro já não o faça melhor. Mas...
Ao procurar ver os cartuns publicados pela revista, não tenho como ostentar a bandeira “Je suis Charlie”, ainda que ela esteja significando uma manifestação que vai além do que foram os artistas e humoristas assassinados. Aliás, devo não fazê-lo justamente porque por ela o topo da pirâmide ocidental expressa a superioridade dos valores da civilização sobre a barbárie.
Não posso me identificar, nem de modo fugaz, sem me sentir idiota e irresponsável, com uma revista que publica charges do profeta Maomé, que é para os muçulmanos o mesmo que Jesus representa para os cristãos, repetidas vezes caricaturado com a intenção de escandalizar os islâmicos, sempre nu, com as nádegas ou o ânus expostos, ora como ator de filme pornô, ora segurando o Corão, o livro sagrado do Islã, que é chamado de merde (merda). Há uma charge em que o Deus dos cristãos está sendo penetrado por Cristo que, por sua vez, está com um símbolo enfiado nas nádegas que representa o Espírito Santo.
O que esse humor (?) seja na ofensa a Maomé e ao islamismo seja na figura da orgia incestuosa que desrespeita a Santíssima Trindade dos cristãos pode ser construtiva para esta mesma civilização que agora se faz representar pelo bordão “Je suis Charlie”?
Os cartunistas da revista Charlie Hebdo são (e aqueles foram) desonestos em se valer dos fundamentos da democracia para coonestar os valores da civilização por meio do humorismo figurativo em nada edificante para a união das pessoas e a paz mundial, cada vez mais cara ao mundo globalizado. As pessoas que os adotam como heróis e como símbolos da civilização são ingênuos ou precisam aderir à corrente midiática que vai passando.
Aristóteles foi o primeiro que colocou o riso como um instrumento poderoso da verdade, daí Umberto Eco tê-lo utilizado como mote filosófico no extraordinário romance “O Nome da Rosa”. Mas, respeitando o gosto de cada qual, não consigo rir e nem ver algo aproveitável nos desenhos que causaram a ira dos assassinos.
O verdadeiro humor usa a sutileza, e não a depravação. Por isso, acredito que possamos adotar símbolos mais dignos da decência que inspira a nossa revolta do que a obra daquelas vítimas da revista Charlie Hebdo, porque a arte dessa revista nada mais é que agressão pura e simples, grosseira, sem sofisticação, que usa a ofensa direta e procura chocar por uma iconoclastia primária.
Je ne suis pas Charlie!

4 comentários:

Anônimo disse...

É blog o autor desse texto? Muito bom. Bem centrado no que seja democracia e mostra que os fins (a liberdade de expressão) não podem justificar os meios (no caso, os utilizados pelo jornal para expressá-la). Pena que os terroristas (como todo terrorista, é óbvio!) não souberam utilizar os meios democráticos para coibir o que faziam os chargistas, como pedidos de indenização, etc.).

Poster disse...

Não, Anônimo.
O autor é o advogado Ismael Moraes, que não estava indicado na postagem.
Agora já está.
Desculpem vocês, leitores.
E desculpa, Ismael.

Anônimo disse...

Ismael, as manifestações foram pela liberdade de expressão, não em apoio às charges. A posição está bem traduzida no artigo "Moi, je suis Charlie, malgré tout", do professor Alexandre Rocha. O endereço vai a seguir. Abraço, Ana Diniz.
http://nelcisgomes.jusbrasil.com.br/artigos/160131506/moi-je-suis-charlie-malgre-tout?utm_campaign=newsletter-daily_20150113_598&utm_medium=email&utm_source=newsletter

Ismael Moraes disse...

Querida Ana Diniz, em nenhum momento quis dizer que as manifestações “Je suis Charlie” são em favor dos cartuns, e não em favor da liberdade de expressão. Apesar de que, neste ponto, faço interpretação diferente da sua: acredito que as manifestações sejam mais amplas do que a defesa da liberdade de expressão: elas são contra o terrorismo e a violência em todas as suas formas. E é por isso mesmo que o que eu quis dizer é que utilizar a bandeira “Je suis Charlie” é um erro, e eu não admito usá-la pelos motivos expostos.
Até porque, para mim, a revista Charles Hebdo pratica também um tipo de terrorismo e de violência ao se valer, covardemente, das instituições democráticas para violentar as crenças pessoais das outras pessoas. Esse tipo de liberdade de expressão aniquila o respeito pela liberdade de crença e o faz através de grotesca falta de decência.
Quais os meios de combater agressões como as da revista? São os meios que o Estado de Direito dispõe: processos e instrumentos de controle da própria imprensa, e não matando ou outros atos arbitrários. Apesar de que, registre-se, quando essa revista chama-se Harakiri ela foi fechada pelo governo francês por ter feito uma charge ofensiva o ex-presidente Charles DeGaulle – numa franca (desculpe o trocadilho) violação à liberdade de expressão.
Portanto, você não entendeu, ou eu fui incapaz de expressar meu pensamento: considero um grande equívoco defender esses fundamentos da civilização (liberdade de expressão, combate a todas as formas de violência) utilizando-se como símbolo o nome de uma revista que para poder se expressar se utiliza de uma forma de violência, que é a agressão grosseira às religiões e às crenças alheias, para a expressão de suas “idéias”. O que vejo naquelas charges é uma molecagem que pretende ser uma iconoclastia, mas que, sem conteúdo, cai no vazio.
Reduzir o significado da liberdade de expressão e do combate à violência com a identidade “Je suis Charlie” é falsear a História, subverter a verdade e amesquinhar esses valores, que poderiam ser representados pela leve e velha pomba branca, com as figuras da Lua Crescente, da Estrela de Davi, do Crucufixo e de outros símbolos da diversidade religiosa, étnica e cultural carregados em seu bico.
Obrigado pelo debate. Abraço