quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Psicografia como prova penal


É de se pensar muito a admissibilidade da psicografia como prova no processo penal brasileiro. Esse fato merece profunda discussão da sociedade, o que, óbvio, não faremos aqui. Contudo, examinemos rudimentos dessa questão, suficientes para banir qualquer voz do além na dicção do nosso direito.
Comecemos pela afirmação máxima do nosso ordenamento jurídico quanto à natureza da psicografia: o Estado brasileiro é laico segundo a Constituição. Sendo laico, não há como validar qualquer ato oficial – judicial ou administrativo – sob motivação que escape das fronteiras da legislação, dos costumes, dos princípios gerais do direito e de outras fontes admissíveis, aplicáveis em sentido amplo ou restrito à matéria jurídica.
O campo do direito está nas relações comuns da sociedade. O direito existe para regular a vida, compreendida estritamente em sua natureza biológica, e tudo que lhe diz respeito aqui neste mundo. Protege o feto e pune o aborto. Regula as sucessões, tendo em vista beneficiários com assentamentos no registro de pessoas físicas ou jurídicas. Protege a inviolabilidade dos túmulos por causa da valoração que eles detêm para sujeitos vivos. O direito brasileiro não entra na seara espiritual, para perquirir a existência da alma ou do espírito. Não lhe interessam Céu, Inferno, Purgatório ou karma. Interessa-lhe a pessoa humana, dentro de uma visão existencial terrena.
Imagino que neste preâmbulo, alguns já cogitam que o espiritismo não é religião, mas uma doutrina ou até mesmo uma ciência. Bem, não sou eu quem vai classificar coisa alheia. Todavia, inegável que o espiritismo tem natureza religiosa. Ele crê e prega a existência de um mundo espiritual. Crê e prega a reencarnação, isto é, o retorno de uma pessoa a outro corpo. Crê na presença de um contemporâneo mundo espiritual invisível na Terra. Crê na possibilidade de comunicação dos mortos, justamente a base da psicografia. Se é religião, não sei. Agora, que parece muito, parece.
E o direito brasileiro? Não crê nem descrê de nada. Laico. Separado de toda e qualquer coisa de ordem metafísica, não importando a nomenclatura ou a classificação. Ele cuida de coisas da Terra. Segue uma visão plana, como se nada houvesse antes do nascimento e nada houvesse depois da morte. Este é o seu território. Sua fatia. Nosso direito não entra na seara espiritualista. É laico por força de norma constitucional. Portanto, como é possível – juridicamente falando – que pessoas consideradas mortas para esse direito possam ser admitidas a “falar” no processo através da psicografia? Onde andará nossa segurança jurídica? Que tipo de certeza teremos doravante? Como contraditar uma “testemunha” dessa natureza? Onde estarão as ferramentas hábeis em nosso ordenamento para exercer o sagrado direito de defesa em matéria penal? A ciência do direito parece correr risco em solo brasileiro.
Em sendo aceita a psicografia como prova penal, por uma questão de isonomia, terão direito de participar do processo penal outras manifestações espiritualistas. Por que não? Podem falar no processo a umbanda, quando médiuns se deixarão incorporar de entidades para revelar o que não está nos autos. Tranca-Rua, Cabocla Mariana e Pena-Verde podem testemunhar à vontade. Videntes poderão revelar o que não se pode ver no plano material da prova. Será admissível a quiromancia, o jogo de búzios e a leitura de cartas. Podem falar protestantes e católicos carismáticos que detenham dons de revelação e de palavras proféticas. Será admissível tudo, que, nada obstante o respeito que devemos ter pelas crenças alheias, são inservíveis à ciência do direito. Inservíveis no plano jurídico construído em nossa nação.
Esperamos que o Brasil continue sendo uma terra da ciência do Direito e de respeito às diversas manifestações de crença, sem predomínio de qualquer uma, sobretudo no campo jurídico. Que juristas da envergadura de Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua sejam respeitados. Doutra sorte, eles também seriam invocados a falar nos autos. E, então, ai dos que não tivessem bons advogados! É melhor a gente deixar os mortos com os mortos. O direito não é uma questão de fé. É uma ciência social.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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