No blog Na Rede, da jornalista Ana Diniz, sob o título acima:
A vida me levou para longe do blog, nas últimas semanas e, como eu não brigo com a vida, somente agora estou de volta. Porque ela me desvia do caminho reto para estradas com curvas impensáveis. Nessas curvas me exercito e aprendo. Quando terminam e à minha frente se desdobra, novamente, a planura, retomo o caminho antigo. Como escrever estas crônicas.
Nesta, vou tratar de uma questão aparentemente acadêmica, mas que é, na verdade, uma carga de profundidade: estas são semelhantes a um extintor de incêndio, mas têm o poder de fazer o mar vomitar – entre outras coisas, submarinos.
Trata-se do debate em torno do falar “certo” ou falar “errado”, levantado em torno de um livro didático distribuído pelo MEC.
Eu li o trecho polêmico, não li todo o livro. Li e assisti, também, algumas entrevistas e artigos variados sobre o assunto. Desconfio que o tema foi para a pauta por conta de competição comercial (dá para imaginar a quantidade de dinheiro empregado na feitura e distribuição desses livros) e, por isso, o debate se iniciou sem uma seriedade básica. Mesmo assim, quaisquer que fossem as intenções iniciais, ele ganhou corpo e consistência, porque é importante.
Quem fala o português que está na gramática? A pergunta é do professor Ataliba Castilho, um linguista e gramático pouco conhecido do grande público mas que é considerado um dos astros na praia da língua portuguesa. E ele responde: ninguém!
O professor Ataliba escreveu uma gramática de português brasileiro com uma parte dedicada à norma culta, isto é, à língua portuguesa padrão, e outra dedicada ao português vulgar. Sabe, pois, do que está falando.
Pois é: para ele só fala errado quem não se faz entender. Tipo assim:
Seu Eduardo, que me ajuda com as plantas, chega comigo e diz: “Tem que aparar o bugarim”. Eu dou um pulo: “Não mexa no meu jasmim bugarim!”. Ele argumenta: “Mas está grande demais, daqui a pouco ele quebra!” E eu: “Como que está grande! Não chega na altura do muro!” Ele me olha espantado e aponta... o buganvile. Que está imenso e realmente precisa de poda. Puxo-lhe as orelhas: “É o buganvile, seu Eduardo, bu-gan-vi-le”.
Ele não se fez entender. Portanto, falou errado.
Mas quando o seu Eduardo chega comigo e diz que a “esquadrilha da porta está bichada” eu sei perfeitamente que ele está falando da esquadria com cupins. Não faz a menor diferença ele falar esquadrilha bichada. Ele fez-se entender; não falou errado.
Quem falou errado fui eu ao dizer-lhe que cuidasse do vírus da gripe. A reação foi um espanto coroado por um sorrisinho que expressava: “Pirou!” E os próximos dez minutos foram para explicar que ele é quem tinha que se cuidar, o que é um vírus e o risco de pneumonia. De tudo ficou-lhe a idéia de uma entidade do mal (o vírus) capaz de estourar o peito de um homem (a pneumonia). Não consegui falar certo com ele.
Jânio Quadros, rigoroso guardião do vernáculo padrão, não escapou de provocar gargalhadas nacionais ao falar no máximo rigor gramatical, como: “Bebo-o porque é líquido, se fosse sólido, comê-lo-ia”. Tanto que até hoje lhe é atribuída uma frase que nunca disse: “Fi-lo porque qui-lo”. A frase é de um jornalista que a usou como ironia ao estilo de Jânio – ironia porque, gramaticalmente, ela está errada. Virou palavra na boca de Jânio e símbolo, até hoje, de pedantismo que beira o ridículo.
Mas será que existe alguma correlação entre a ferocidade com que Jânio usava e exigia o uso do português padrão e a discussão de hoje sobre “falar certo” ou “falar errado”? Lógico que sim.
A explicação mais evidente está em “My fair lady”, o filme. Quando a elegantíssima garota começa a conversar, no camarote do hipódromo, cria um violento contraste entre sua figura e sua fala. A figura se desmonta diante do discurso: todos percebem imediatamente a fraude. Ela falava errado, ali – embora falasse certo no mercado de onde vinha. Ou seja: os espaços sociais são, muitas vezes, demarcados pela forma como se usa a língua materna. Uma pessoa fantasiada de vendedora de flores que falasse a língua padrão no mercado provocaria o mesmo choque que tiveram os convivas do sofisticado camarote do hipódromo. Elas perceberiam a fraude rapidamente.
A elite (que não é constituída pelos ricos, mas dos que a sociedade reconhece como os melhores entre todos, diga-se de passagem) demarca seu espaço com a língua padrão. O vocabulário é mais amplo e a sintaxe mais elaborada. Está mais perto da gramática que qualquer outra categoria social até porque assuntos complexos demandam maior conhecimento gramatical. É impossível, por exemplo, fazer-se entender em assunto científico com preposições usadas erradamente. Ou em assuntos financeiros, sem as condicionais corretas.
O grito: “Estão ensinando português errado nas escolas” que sintetiza a denúncia feita e a discussão que seguiu pode ser interpretado de duas maneiras: uma, a elite pressente uma ameaça na demarcação do espaço social; outra: há uma tentativa de impedir que os escolares da rede pública cheguem à elite.
Jânio, que não nascera em grupo de elite, usava a língua padrão para enfrentá-la. “Respeitem-me, falo melhor que vocês” – era o recado que mandava com os seus pronomes oblíquos postos na linguagem corrente.
A questão gira, pois, em torno da elite e é por isso que é tão importante. O rumo que toma a elite é o rumo que toma um povo inteiro. Durante grande parte da história da humanidade ela foi constituída principalmente por guerreiros e religiosos; hoje ela se tornou muito mais complexa, reunindo gente que lida com dinheiro, política, ciência e tecnologia, armamentos, informação e comunicação, religião e filantropia. Todas essas pessoas precisam ter o domínio da língua padrão: assim, esta não pode ser um caos, tem que ser ancorada na gramática e no dicionário. E cabe à escola ensinar isso.
Eu diria que o saldo do debate envolveu a reafirmação do ensino da língua padrão na escola; um avanço na compreensão de que o discurso deve estar adequado aos ouvintes; um reconhecimento do vigor e da riqueza do português vulgar; e, em âmbito universitário, o sentimento de que é preciso conhecer e sistematizar esta outra face da língua nativa, aquela falada na intimidade das casas e nas ruas.
Quanto ao livro questionado, a denúncia mostrou-se falsa: o professor defende o ensino da norma padrão – apenas colocou mal as coisas. Ou seja, falou errado.
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