O que é a culpa? O erro e a inocência não estão misturados?
O filósofo Aristóteles teorizou que a tragédia resulta numa catarse da audiência, e isto explicaria o motivo dos humanos apreciarem assistir ao sofrimento dramatizado. Entretanto, nem todas as peças que são regularmente reconhecidas como tragédias resultam neste tipo de final catártico - algumas têm finais neutros ou mesmo finais dubiamente felizes. Determinar exatamente o que constitui uma tragédia é um assunto freqüentemente debatido. Alguns sustentam que qualquer história com um final triste é uma tragédia, enquanto outros exigem que a boa história preencha um conjunto de requisitos - em geral baseados em Aristóteles - para serem consideradas tragédia.
Aristóteles dedicou parte de sua vida ao estudo e análise da tragédia, que tinha grande papel na cultura grega, e posteriormente, ocidental. Ele descreve a tragédia como uma imitação de uma ação completa e elevada, em uma linguagem que tem ritmo, harmonia e canto. Afirma que suas partes se constituem de passagens em versos recitados e cantados, e nela atuam os personagens diretamente, não havendo relato indireto. Por isso é chamada (assim como a comédia) de drama. Sua função é provocar por meio da paixão e do temor à expurgação ou purificação dos sentimentos (catarse).
Aristóteles afirmava que a tragédia, enquanto gênero literário, é uma imitação dos atos humanos. Nascida no século V a.C., em Atenas, na Grécia, a tragédia estava associada à organização democrática, à instituição do direito na pólis, a cidade. Sobrepondo-se à poesia lírica e épica, a tragédia é um espetáculo montado que se desenrola ao vivo imitando, de forma condensada, a realidade dos fatos.
Na tragédia, o herói vê-se confrontado consigo mesmo e com o outro. É o seu dilema que movimenta a ação trágica. Mesmo escolhendo a opção que aparenta ser a melhor, os atos do herói assumirão sentidos diferentes que se voltam contra ele e o denunciam como criminoso.
A tragédia nos aponta a ilusão de pensar que o homem é dono de seus próprios atos. Há muito já perdemos a conta das vezes em que a ação humana resultou catastrófica. Observem que o homicídio de Isabella, 5 anos, na cidade de São Paulo, se insere nesse contexto.
Jean-Pierre Vernant, historiador e filósofo francês, afirma que o homem trágico, nascido há 25 séculos, continua atualíssimo. E por trás de toda tragédia colocam-se perguntas à nossa reflexão: qual é a relação do homem com seus atos? Em que medida ele é realmente seu autor? Seu ato não é o resultado de outros elementos, cuja existência ele só perceberá tarde demais? Ele é inocente ou culpado? O que é a culpa? O erro e a inocência não estão misturados? A tragédia é uma forma de nos interrogarmos sobre o homem, sobre o mundo e a vida, sobre o que é justo e verdadeiro.
O exemplo clássico do homem trágico é o Édipo, de Sófocles. Homem sábio, lúcido, virtuoso, o salvador da cidade de Tebas, Édipo é, ao mesmo tempo, o monstro incestuoso que mata o pai, dorme com a mãe, tem filhos com ela. Para Vernant, o erro de Édipo foi existir. O oráculo de Delfos já advertira seu pai da infelicidade que pesava sobre ele. Não suportando o olhar do outro, o trágico Édipo perfura os próprios olhos.
Diante do homem trágico, que acumula sobre si todos os sentimentos do mundo, somos inundados pelos sentimentos de horror e de piedade. O espetáculo da tragédia mostra-nos que, por trás dos atos humanos, encadeiam-se dramas, crimes, queixas, lutos, doença, sangue e morte. O cenário da tragédia nos sacode, purifica-nos de nossos próprios erros, faz-nos exorcizar nossos próprios demônios interiores.
A tragédia grega inventou o homem que questiona seus atos, um homem monstruoso e angustiado que, tarde demais, compreende que fez algo totalmente diferente do que desejava fazer. Ao homem trágico só resta o caminho do sofrimento, pois só o sofrimento é capaz de purgá-lo, de permitir-lhe voltar a ser humano.
A mensagem da tragédia tornou-se inteligível ao homem contemporâneo. O acelerado progresso técnico-científico de nosso tempo se, por um lado, nos torna senhores do mundo, por outro nos faz caminhar numa corda bamba. A sensação é a de que o abismo nos pode devorar a qualquer momento, a de que a catástrofe nos espreita por todos os lados e a cada instante. E nenhum de nós está imune a mergulhar no impensável. O deserto pode não ser o nosso destino, mas, sem dúvida, para muitos de nós, pode tornar-se uma passagem obrigatória.
Sergio Barra é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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