sábado, 24 de maio de 2008

Belo Monte entre versões, fatos, preconceitos e paixões

Nos últimos dias, desde a última terça-feira, o Espaço Aberto tem recebido informações das mais variadas fontes sobre os incidentes que resultaram, em Altamira, no espancamento do engenheiro da Eletrobrás Paulo Fernando Rezende por índios caiapós, durante o Encontro Xingu Vivo Para Sempre, ontem encerrado.
E tem sido impressionante como o enfoque, o sentido, a intenção, os relatos e descrições são expostos de acordo com as conveniências de cada qual. É só dar uma olhada rápida, superficial mesmo, em jornais, sites ambientalistas, blogs e agências de notícias, para se constatar que o difícil será encontrar uma versão que esteja um pouco mais livre das interferências naturais de múltiplas militâncias – inclusive e principalmente da militância contra e a favor da construção da hidrelétrica de Belo Monte.
Pois a intensidade da militância é que dificulta a avaliação e a ponderação sobre certos fatos com base em sentimentos e perspectivas um pouco mais – apenas um pouco mais, repita-se - imunes a prejulgamentos e paixões.

As versões
O blog já teve contato, por exemplo, com informações de que os índios teriam tentado matar o engenheiro da Eletrobrás. Outros escreveram que os índios já saíram das aldeias “orquestrados” para fazer o que fizeram. Isto é a essência da versão corrente de um lado da militância, daqueles que são favoráveis à construção da Hidrelétrica de Belo Monte.
Ao contrário, outras informações davam conta de que o engenheiro não foi agredido, espancado, bordunado ou esbordoado seja lá por quem fosse. Não. Em verdade, sabe-se por esta versão que o engenheiro acabara de falar em tom “debochado” em favor da hidrelétrica, foi cercado pelos índios e, ao tentar sair do meio deles, “feriu-se no braço durante a confusão”. Vejam bem: o engenheiro não foi espancado, e sim viu-se metido no meio dos índios e “saiu ferido”. Esta é a versão dos militantes contrário a Belo Monte.
Se você não acredita, veja aqui uma informação disponível no site do Conselho Indigenista Missionária (Cimi): “Ao encerrar sua [do engenheiro] fala, um grupo de índios, entre os cerca de 600 presentes, se aproximaram cantando e empunhando bordunas – espécie de porrete – e terçados – tipo de facão usado para abrir picadas na mata. Formou-se então uma roda de indígenas em torno de Rezende, que conseguiu sair com a intervenção dos organizadores. Na confusão, o representante saiu ferido no braço direito.”
Pronto. Isso são versões. E os fatos? Quais são os fatos?

Os fatos
É fato que o engenheiro foi espancado. E foi espancado por índios. Ele estava no meio de índios, e não de monges tibetanos, de passistas da Beija-Flor, da Globeleza da temporada ou então de jogadores do Íbis – o pior time da face da Terra -, que seriam facilmente identificáveis.
É fato que o engenheiro não foi ferido apenas no braço. Foi ferido – e bastante ferido – no braço direito e nas costas. É fato que os ferimentos foram provocados por bordunas e facões. Eram esses os instrumentos usados por índios que cercaram o engenheiro. Tais instrumentos eram visíveis a olho nu. Eram visíveis a qualquer um.
É fato que agressões como as praticadas contra o engenheiro são puníveis pela Lei Penal brasileira. Claramente puníveis. É fato. Abra o Código Penal, verifique as tipificações que configuram os crimes de lesões corporais e constate você mesmo. É fato, portanto, que agressões como as que vitimaram o engenheiro da Eletrobrás são sancionáveis.
É fato, além disso, que agressões são revoltantes. Qualquer agressão. Agressões contra índios revoltam. Contra o presidente da República revoltam. Contra militantes pró-Belo Monte revoltam. Contra militantes anti-Belo Monte revoltam. Contra “brancos” que não gostam de índios revoltam. Contra “índios” que não gostam de brancos, igualmente. Contra o engenheiro da Eletrobrás, idem. Contra o mais anônimo cidadão, idem, idem.
Quem viu as agressões? Todo mundo. Todo o País e o País todo. As imagens exibidas por emissoras de televisão fartamente mostraram o espancamento. Não há versão que se sustente contra fatos. Fato é fato.
Se os índios, com o espancamento, tinham o animus de matar o engenheiro – como insinuam ou mesmo dizem claramente os militantes pró-hidrelétrica -, isso deve ser esclarecido pelo inquérito policial em curso. Se os índios já saíram da aldeia estimulados a agir assim ou assado, também será possível à polícia esclarecer.
De outro lado, se os índios – conforme sustentam os militante anti-Belo Monte - ficaram enfurecidos porque se sentiram diminuídos, debochados, espezinhados, humilhados e afrontados pelo engenheiro, isso também será possível aferir no levantamento policial em curso. Inquérito que também será capaz de aferir a proporcionalidade entre a ofensa suposta recebida – o deboche – e a reação, o espancamento.
Mas os fatos são aqueles que já foram relatados acima: houve o espancamento – odioso e intolerável; e espancamentos, além de revoltarem, configuram crime que deve ser apurado e punido nos limites da lei.

Os preconceitos, eles sim, é que são selvagens
E por que tudo isso é deplorável? Por vários motivos.
Primeiro, porque esses incidentes reforçam preconceitos. E os preconceitos também são odiosos, porque lancinam e lancetam a alma. E almas lancinadas e lancetadas provocam dores e feridas muitas vezes incuráveis. Almas atingidas por estigmas levam o estigmatizado a se sentir um verme.
E as vítimas maiores dos preconceitos são os índios que espancaram o engenheiro. Índios não são selvagens. Mas incidentes como esses se prestam na medida exata para que se reforce o preconceito de que são selvagens. O que é uma injustiça e um despropósito inominável.
O pai que joga a filha do sexto andar de um edifício é um desalmado. O índio que dá bordunadas num cidadão indefeso – crime intolerável, repita-se – é um selvagem. São equivalentes tais conceitos? É claro que não.
Os índios, muitos deles, sabem o que querem. E muitos querem o certo. Muitos índios, ao contrário do que se pensa, não são manipuláveis. Ou pelo menos não são facilmente manipuláveis.
Mas incidentes como os de Belo Monte fazem com que a maioria os atire na vala-comum e os reduza a seres desprovidos de vontade e de discernimento. E os índios têm discernimento, mas discernimento compatível com graus de aculturação diferentes. Mas ninguém, entre os preconceituosos, haverá de pensar assim: se é índio, é selvagem, é manipulável e preguiçoso. E pronto.
Eis o preconceito. Um preconceito, este sim, selvagem.

O encontro será o “encontro do espancamento”
Há outro motivo deplorável. E dos mais relevantes.
É que o Encontro Xingu Para Sempre poderia entrar para a História como um divisor de águas entre um Estado que padece ainda dos efeitos de um endocolonialismo revoltante, como o Pará, e um Estado que tenta – aos atropelos, embora - superar essa condição, intervindo diretamente, discutindo, debatendo, discordando e protestando em defesa deus seus sonhos, de suas aspirações e de seus direitos.
Mas, infelizmente, o Encontro Xingu Vivo Para Sempre vai entrar para a História como um evento em que um engenheiro da Eletrobrás foi espancado. Quando se lembrarem de Belo Monte daqui a 50 anos, lá estará registrado que uma das etapas constou de um encontro no qual índios agrediram um engenheiro, em incidente que ganhou repercussão nacional – e negativa para os índios, vale dizer.

Belo Monte não é coisa para torcedores
Deplora-se tudo isso porque é preciso, sim, discutir Belo Monte. Exaustivamente. É preciso discutir sua viabilidade técnica.
É preciso comprovar se a usina será capaz de gerar 11 mil megawatts de energia quase a fio d’água, ou seja, praticamente sem precisar de um barramento ou contando com um barramento mínimo, para inundar área que não ultrapassaria 400 km2.
Além disso, será possível fazer Belo Monte funcionar no período de estiagem? A usina terá energia firme que justifique um investimento tão grande? A usina, com 11.182 MW de potência instalada, terá condições de operar com esta potência além de três meses a cada ano. É razoável ou não o temor de que, em função do regime hidrológico nos demais meses, a água disponível só vai possibilitar uma energia firme de 4.670 MW, o que tornaria a energia muito cara para justificar o investimento exigido no empreendimento?
Será viável economicamente estender longas linhas de transmissão até os grandes centros consumidores? Não haveria alternativas outras a Belo Monte? É tudo ou nada? É Belo Monte ou é apagão? É Belo Monte ou a morte? É Belo Monte ou o atraso irrecuperável? Enfim, Belo Monte é o mesmo que tudo ou nada?
Temas dessa relevância e dessa dimensão não justificam torcer contra ou a favor. Quem torce é torcedor. E torcedores – como esse tricolores debochados, por exemplo – não são muito amigos da racionalidade. São amigos de suas paixões. Torcedores não se preocupam muito com a jogada que antecede o gol. Querem o gol. É o gol ou nada. Assim é o torcedor.
Ninguém, em relação a Belo Monte, deveria agir com paixão. Ninguém deveria se preocupar apenas com o resultado, com a consecução final: se a hidrelétrica será ou não construída. É preciso estudá-la, discuti-la, ponderar sua viabilidade, os prejuízos que poderá causar e a forma de minimizá-los. Como também é preciso avaliar os benefícios que poderá trazer e a quem mais diretamente interessam, a quem mais diretamente afetam.
É uma pena, sinceramente, que tenhamos todos desperdiçado uma grande oportunidade de entender melhor nossas próprias aspirações e a forma de concretizá-las. Sem agressões, sem preconceitos, sem versões que encubrem fatos, sem violências e sem passionalismos.
Não seremos capazes de agir assim? Ou por outra: por que não fomos capazes de agir assim até agora?
Por quê?

4 comentários:

Anônimo disse...

Meu caro,

Escreveste com tamanha lucidez que estou aqui para parabenizá-lo. Estou gravando a cobertura feita pela imprensa para servir de estudo na agência. Certamente, na história dos licenciamentos ambientais será difícil ter outro empreendimento por essas bandas, onde o preconceito e paixão conduzam um debate com tanta intensidade por mais de duas décadas.

Abraços,
Cleide Pinheiro

Poster disse...

Oi, Cleide.
Obrigado.
Se puderes, me manda as conclusões do estudo que vocês fizerem, ainda que apenas para minha informação.
Acho importante fazermos uma avaliação serena da cobertura de eventos como este.
Abs.

Anônimo disse...

Serão para aprendizado dentro de "casa", troca de informações com a equipe. Assim que avançarmos te informo.

Abraços,

Cleide Pinheiro

Poster disse...

OK, Cleide.
Obrigado.
Abs.