segunda-feira, 26 de maio de 2008

A judicialização da política



Inúmeras decisões judiciais têm sido responsáveis, nos últimos anos, pelo direcionamento de políticas públicas de relevância, como a obrigatoriedade de fornecimento de medicamentos a pessoas carentes, a exigência de estudos de prévio impacto ambiental para a liberação de produtos modificados geneticamente, o reconhecimento de direitos previdenciários a companheiros em relações homoafetivas, a possibilidade de levantamento de valores de FGTS para casos não expressamente previstos em lei, entre outras.
Ao assim agir, o Judiciário vem atuando como catalisador e tradutor da vontade constitucional, se antecipando, muitas vezes, ao legislador e ao administrador, na busca pela concretização máxima dos objetivos traçados no Texto Constitucional. A tal fenômeno se tem dado a denominação de judicialização da política.
O fenômeno reflete o amoldamento do Judiciário a um novo papel, no qual o juiz deixa de ser um mero árbitro pacificador de conflitos individuais e se torna um agente transformador do direito, no sentido da realização da justiça material concreta nos temas concernentes às políticas públicas. O Judiciário, portanto, deixa de ser o poder imaginado por Montesquieu, para quem os juízes nada mais eram que "a boca da lei", devendo, portanto, manter uma postura absolutamente passiva e neutra em relação a sua aplicação, passando a exercer papel político ativo de extrema relevância nas questões que atingem a sociedade de forma mais sensível e de maneira coletiva.
Tal mudança de paradigma, contudo, não veio isenta de críticas. As mais comuns são: a de que a atuação do Judiciário, na implementação direta das referidas políticas, careceria de legitimidade democrática, bem como a crítica concernente à "reserva do possível", ou seja, de que os recursos públicos seriam insuficientes para atender a todas as necessidades sociais, cabendo ao Estado-Administração a tomada de decisões acerca do setor prioritário em relação aos quais serão destinados os investimentos dos recursos existentes.
As críticas devem ser analisadas e absorvidas pelos integrantes do Poder Judiciário com consciência e serenidade, sem que isso implique, contudo, em se afastar do perfil apontado supra, uma vez que se trata de fenômeno irreversível, diante da realidade social e política posta.
Fazendo-se a análise das críticas apontadas, no que concerne à primeira, relativa à ausência de legitimidade democrática, merece ser rechaçada, na medida em que referida legitimidade existe e resulta de impositivo de ordem constitucional, perceptível no momento em que o Texto Constitucional deixa de ser mero reprodutor de garantias e liberdades, passando, também, a prever promessas sociais a serem implementadas, fazendo-se necessário, portanto, para o efetivo controle da aplicação constitucional, atividade que é da própria essência do Poder Judiciário, uma postura positiva, no sentido da concretização das referidas promessas sociais, seja obrigando o poder público a agir, seja agindo de forma substitutiva, na hipótese de omissão dos demais poderes.
A tese já foi bem exposta pelo ministro Celso de Mello, na ADPF nº 45 MC/DF, esclarecendo que atuação do Judiciário, ainda que em bases excepcionais, pode e deve ocorrer quando "os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade dos direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático."
Percebe-se, portanto, que o novo perfil assumido pelo Judiciário tem plena legitimidade democrática, não violando, ademais, o princípio de separação dos poderes, sendo, na realidade, reflexo do papel do próprio Direito e do Estado na moderna "sociedade do Bem-Estar", a que se refere Mauro Cappelletti em sua obra "Juízes Legisladores?". A complexidade da sociedade contemporânea, portanto, reclama essa atuação do Judiciário, servindo como instrumento de controle dos representantes do povo no implemento de políticas públicas de busca do bem-estar social.
Em relação à crítica da "reserva do possível", é um limite de fato existente, mas que não deve ser visto, no Brasil, como empecilho inescapável, nem do mesmo modo que nos países onde a distribuição de renda é mais simétrica e as políticas públicas mais efetivas, dispensando o controle jurisdicional mais intenso. No nosso país, a realidade social e política existentes dão margem de manobra ao Judiciário bem maior, sem que isso implique, obviamente, em ser irrestrita, devendo estar pautada sobre certos parâmetros balizadores.
Os parâmetros balizadores da atuação jurisdicional são o do "mínimo social", de um lado, e o da avaliação do impacto da decisão sobre os orçamentos públicos, de outro. Em nome do padrão do "mínimo social", os juízes não devem hesitar em suas determinações, concernentes à efetivação de políticas públicas, quando isso se mostrar imprescindível e factível para a manutenção de um padrão social mínimo de convivência. No âmbito do mencionado factível, de outra banda, é que há que se aferir o aspecto balizador do impacto sobre o orçamento, devendo a razoabilidade da medida determinada em sede judicial ser demonstrada à luz do caso analisado em concreto, podendo ser adotadas, de forma a se obter a solução ponderada e possível, saídas criativas, como a fixação de prazos mais flexíveis e compatíveis com o processo de elaboração orçamentária.
Postas e superadas as críticas, percebe-se, por fim, que o novo paradigma de magistrado cobra do juiz uma postura de estar consciente de suas limitações, mas, ao mesmo tempo, do papel político que exerce, exigindo-lhe, ademais, uma sensibilidade social e um leque de conhecimentos muito maior do que se lhe exigia em outros tempos. Exige-lhe, portanto, estar consciente de que os juízes não podem tudo, nem devem poder, na medida em que não são "super-heróis" constitucionais, capazes de dar pleno e imediato cumprimento aos desideratos do Texto Magno. Malgrado isso, podem muito, dentro dos parâmetros balizadores apontados, e, nessa perspectiva, têm por obrigação exercer o seu poder-dever de forma a dar sempre um passo maior no sentido de se alcançar a construção uma sociedade mais justa, solidária e igualitária.

Arthur Pinheiro Chaves é juiz federal substituto da 1ª Vara da Seção Judiciária do Pará

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