segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Sem teocracia e nem submissão


Com duas ditaduras a menos, o mundo árabe começa a mudar de feição. Até que ponto? É cedo para avaliar o alcance dessas revoluções, mas é certo que a vontade dos povos da região não mais poderá ser de todo ignorada e submetida a líderes autoritários. Uma nova ordem vai se articular na região, com consequências para todo o mundo.
A realidade é que a revolução da Tunísia, como a do Egito, foi larga e rasa. Com a maioria dos manifestantes na Praça Bourguiba, em Túnis e na Praça Tahrir, no Cairo rejeitando os líderes que a mídia ocidental queria impor: Mohamed El-Baradei ou a Fraternidade Muçulmana. De fato, como fez o executivo do Google preso, Wael Ghonim, em um Twitter na sexta-feira (18.02.2011) à noite, rejeitaram qualquer noção de que pudessem ser "figuras de proa", insistindo que a população é a dona dos acontecimentos. Ainda resta uma perigosa dissonância entre as duas porções do país. O Egito da mídia eletrônica e o Egito das ruas.
A Fraternidade não pretende lançar um candidato próprio à presidência ou espera controlar a maioria do Parlamento, mas seu apoio a um líder laico pode ser decisivo. Sua força vem de redes de assistência social, da difusão por países muçulmanos, da presença de militantes leigos em várias camadas sociais e do papel de referência para os destituídos por décadas nas quais não existiu oposição parlamentar laica. É possível um governo islâmico moderado vigiado por militares, a exemplo da Turquia.
Agora, tem uma democracia em gestação sob as aparências de uma ditadura militar que, pressionada pelo povo nas ruas, expulsou o governo de Hosni Mubarak, dissolveu o Parlamento e suspendeu a Constituição. Ou seria essa uma descrição excessivamente otimista dos fatos?
Por que a luta da Praça Tahrir foi vitoriosa quando as da Praça Tiananmen (Pequim, 1989) e da Praça Enghelab (Teerã, 2009) deram em nada? Porque conseguiu de fato parar o Egito. Engessou de imediato o turismo, vital para o país, e espalhou-se para todas as principais cidades, onde instituições públicas, a começar pela polícia, foram sitiadas, queimadas ou ocupadas. Nos últimos dias do regime, trabalhadores das indústrias e serviços - inclusive o vital Canal de Suez - começaram a parar, o que parece ter sido o golpe de misericórdia no governo do velho tirano.
Pode-se esperar o crescimento da influência de Ancara e Teerã (ao menos enquanto a teocracia não for abalada) e um maior isolamento de Israel. Sem o respaldo do Egito e com instabilidade em vários países árabes, dificilmente haverá clima para um ataque ao Irã que, para testar sua nova liberdade de movimentos, enviou navios de sua Marinha ao Mar Vermelho e à Síria, no Mediterrâneo, esperando passar por Suez.
No plano militar, a região tende a se afastar da órbita da Otan - à qual são formalmente coordenados, atualmente, Egito, Jordânia, Argélia, Tunísia, Marrocos e Mauritânia, além de Israel - e no econômico, da tutela do FMI, Banco Mundial, EUA e União Européia.Terminado o carnaval da vitória, a queda do governo de Mubarak encorajou a oposição a outros regimes autoritários. A revolta do Egito se propagou. A bola da vez parece ser o governo do bizarro ditador líbio Muammar Khadafi, há 41 anos no comando de um Estado sem Constituição. O novo mundo árabe promete não ser teocrático e muito menos submisso. O mundo árabe será mais um bloco relativamente autônomo em um mundo cada vez mais multilateral.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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