quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Teologia das tragédias


Sempre que o mundo enfrenta alguma catástrofe, uma velha pergunta volta a incomodar certas pessoas: onde Deus estava nessa hora? Por que ele não impediu tanta desgraça? E, à falta de uma resposta convincente, muitos preferem lançar mão da incredulidade. Passam a duvidar da misericórdia e do cuidado divino e, em casos extremos, da existência da própria Divindade.
Evidentemente, não pretendo aqui elucidar toda a questão. Tampouco me constituir advogado de Deus, trabalho de que ele não precisa, sendo, como cremos, o Todo-Poderoso. Mas vamos conversar um pouco sobre essa teologia popular aplicada a tragédias, como essa que enlutou o Rio de Janeiro.
Partimos, naturalmente, da teoria do criacionismo inspirada na Bíblia, segundo a qual o Universo e toda forma de vida provêm de uma ação direta de Deus. Mas, ato contínuo, precisamos logo classificar o tipo de relacionamento que esse Deus passou a ter com o mundo: se lhe deu plena autonomia, assumindo suas criaturas todo risco de convivência com a obra da Criação; ou se monitora à risca os movimentos do Cosmos, de tal sorte que receba, em instância final, a culpa pelos infortúnios que sobrevenham à Terra, nossa casa nesse contexto.
Sem querer induzi-lo a esta ou àquela ideia, a história do mundo prova que Deus não é o causador direto do mal nem do bem, quando estes são resultados de atos da vontade humana. Não obstante, ele governe sua criação, conservando em perfeita harmonia as leis que estabeleceu para o Universo e para a vida em particular, essa criação está sujeita à ação predatória da própria humanidade. Submete-se aos erros de quem pode decidir, seja pessoa individual, família, nação e governos. Por via de consequência, cada qual deve assumir seu quinhão de responsabilidade.
No tocante ao lugar onde moramos, Deus não pode ser responsabilizado. Somos nós quem escolhemos o endereço, seja esta uma escolha deliberada ou circunstancial. O mundo que Deus criou tem montanhas e planícies, vales e florestas, geleiras e desertos. Com a sua natureza ubíqua, o homem pode habitar qualquer desses pontos geográficos. Porém, admita os riscos para cada qual.
Veja o caso de Belém! Vivemos em parte sob um antigo mar de lama, abaixo do nível do mar. Em caso de uma chuva mais demorada, já estamos navegando pelas ruas. De quem é a culpa? De todos. Menos de Deus. Ele fez isto aqui como várzea, planície, bacia do Amazonas. Aliás, diga-se de passagem, a própria geografia muda, independente de ação humana ou divina. Os ventos, a chuva, o mar, os rios... Tudo está em movimento na natureza.
Somos responsáveis por nossas escolhas, inclusive de moradia. Deus não pode ser culpado. O fato de sermos um país cristão não altera esse quadro. Há países não afetos à religiosidade que vivem muito bem, com excelente padrão de vida.
Nada obstante, a existência de livramentos extraordinários não pode ser questionada. Que existem milagres pontuais, existem, segundo especialistas na área de salvamento. Mas não nos compete averiguar as ações de Deus a respeito. Se ele deixa alguém sobreviver a tragédias, deve ter lá seus motivos. Não é uma lei geral. A rigor, o fato de estarmos no mundo nos torna vulneráveis a qualquer fenômeno geológico.
Não poderia Deus ter pelo menos avisado sobre essa catástrofe no Rio? E quem disse que não avisou? Ele vem fazendo isso há décadas, desde que os morros começaram a ser ocupados. Depois, fala pelas autoridades da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros, através de seus relatórios técnicos. Fala pela boca anátema de mercenários políticos na hora de pedir votos. Fala todo dia pela imprensa. E agora mais uma vez.
Está na hora de cada qual assumir sua culpa. Principalmente o governo do Rio, cujo estado, de 2009 até 2014, vai receber quase dois bilhões para evitar essa desgraça!

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RUI RAIOL é pastor e escritor (www.ruiraiol.com.br)

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