quinta-feira, 19 de agosto de 2010

“Você” é caso de Justiça? Nem tanto.

Olhem só.
Nem tudo está perdido.
Quando a Justiça distribui bem a justiça – porque às vezes, reconheçamos, a justiça é distribuída de forma meio, digamos, estranha -, fica essa boa sensação de que nem tudo está perdido.
Lembram-se do caso do juiz e do porteiro?
Foi em 2005.
Em Niterói (RJ), os porteiros de um edifício chegaram a ser obrigados por liminar a se dirigir ao juiz Antônio Marreiros, titular da 6ª Vara Criminal de São Gonçalo, por "senhor" ou "doutor".
Sua Excelência o magistrado ficou aborrecido quando foi pedir ajuda a um empregado da portaria para consertar um vazamento no teto de seu apartamento. O funcionário recusou-se a atender o juiz sem a permissão da síndica.
Os dois discutiram.
Após discutirem, Marreiros alegou que o porteiro passou a tratá-lo por "você" com a intenção de desrespeitá-lo.
Hehehe.
E aí?
E aí que uma liminar chegou a ser concedida em favor do juiz.
Pois é.
A sentença foi prolatada.
É da lavra de Sua Excelência o juiz Alexandre Eduardo Scisinio, da 9ª Vara Cível da Comarca de Niterói.
Pois é.
Leiam e vejam.
Vejam que nem tudo está perdido.

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Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CONDOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRANATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de 'senhor'. Disse o requer ente que sofreu danos, e que esperava a procedência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento de 'Doutor', senhor' 'Doutora', 'senhora', sob pena de multa diária a ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (...)
DECIDO. 'O problema do fundamento de um direito apresenta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter.' (Noberto Bobbio, in 'A Era dos Direitos', Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justificando tamanha publicidade que tomou este processo. Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direito. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado a solução do conflito.
Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto incomoda o probo Requerente. Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida. 'Doutor' não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se mera tradição referir-se a outras pessoas de 'doutor', sem o ser, e fora do meio acadêmico.
Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que se trata de título conferido por uma universidade à guisa de homenagem a determinada pessoa, sem submetê-la a exame. Por outro lado, vale lembrar que 'professor' e 'mestre' são títulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o curso de mestrado. Embora a expressão 'senhor' confira a desejada formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por 'você', pode estar sendo cortês, posto que 'você' não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social.
O brasileiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a classe 'semi-culta', que sequer se importa com isso.
Na verdade 'você' é variante - contração da alocução - do tratamento respeitoso 'Vossa Mercê'. A professora de linguística Eliana Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas frequências do pronome 'você', devem ser classificados como formais.
Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chamadas de 'seu' ou 'dona', e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples uso do nome da pessoa substitui o senhor/ a senhora e você quando usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento diferente. Na edição promovida por Jorge Amado 'Crônica de Viver Baiano Seiscentista', nos poemas de Gregório de Matos, destacou o escritor que Miércio Táti anotara que 'você' é tratamento cerimonioso. (Rio de Janeiro/ São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publicar Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de 'você' e 'senhor' traduz-se numa questão sociolinguística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasalhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor dacausa.P.R.I. Niterói, 2 de maio de 2005.

ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO
Juiz de Direito

Um comentário:

Ismael Moraes disse...

Nesse caso foi uma crise aguda de juizite - que constitui enfermidade mental pela qual um titular de cargo no Judiciário tem pretensões divinas. Subdivide-se em aguda e leve. Na leve, o doente acha que é Deus; ma aguda, ele tem certeza. É incurável, e, o pior, é altamente contagiosa.
Essa doença é muito semelhante à doutorite, muito comum em médicos, advogados, et alli.