segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Sob a guarda dos coturnos


Fazendo uma reflexão sobre o legado do século 20, uma sucessão de disputas étnicas intensas, conflitos travados com armas de destruição em massa e genocídios atrozes. Via-se com um misto de ironia e repulsa aqueles que vislumbraram, na queda do Muro de Berlim, um final redentor para essa história de guerras dolorosas, ou digamos assim, uma história que tem impacto no presente.
Longe de enxergar no passado uma fonte de "lições" para o presente - como reza o chavão propalado por muitos historiadores -, em 2008, o historiador britânico Tony Judt, morto no último dia 6, considerava, tão somente, que estudar a história poderia nos ajudar a evitar os mesmos erros. Era algo especialmente verdadeiro em relação a eventos ainda presentes na memória dos vivos.
Seguindo essa linha de raciocínio, as palavras de Judt descrevem à perfeição nossa dificuldade para lidar com o período mais sombrio da história recente do Brasil, os anos de chumbo do regime militar. O maior exemplo de relevância desse passado para o presente está na história pessoal dos dois principais candidatos à Presidência. Tanto o tucano José serra quanto a petista Dilma Rousseff entraram na política por meio de sua militância na resistência à ditadura. Perseguido, Serra foi para o exílio e viveu um período que ele não cansa de narrar em debates e entrevistas. Dilma, contudo, evita falar dos tempos em que participou de grupos armados, depois de presa foi torturada.
Sem entender todas as facetas do período militar, fica impossível avaliar seu impacto em Pindorama atual. Essas facetas, digamos, essas memórias, entende-se, enfim, a demora na divulgação de papéis da ditadura. Eles são manuseados por entusiastas do regime e da repressão. Começando nos anos 1980, ainda no regime de exceção, a luta pela liberação dos arquivos e documentos secretos produzidos pelos órgãos de repressão parecia ter chegado a um termo definitivo em 13 de maio de 2009, exatamente pelas mãos de Dilma, candidata do PT à Presidência. Dilma foi a responsável pela criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, no ano passado. Chamado de Projeto de Memórias Reveladas. Excelente idéia, não fora a qualidade dos guardiões escolhidos para a missão.
Para cuidar de tão relevante operação, foi designado o Arquivo Nacional, cuja sede no Rio de Janeiro abriga boa parte da memória pública do País. A questão é que não são eles, mas um grupo da pesada, formada na linha de frente doutrinária dos governos da ditadura, que se tornou, paradoxalmente, depositária desses documentos. Uma entidade de nome ingênuo: Associação Cultural do Arquivo Nacional (Acan). Uma agremiação recheada de remanescentes dos anos de chumbo, inclusive generais e coronéis, mesclada de uma maioria de civis formados pela Escola Superior de Guerra (ESG) e à Associação Comercial do Rio de Janeiro.
O diretor-geral do Arquivo Nacional, Jaime Antunes da Silva, no cargo desde 1992, mas sobreviveu a outros três presidentes, Itamar, FHC e Nosso Guia. Em 2010, dispôs de um orçamento de R$ 60,5 milhões. O mentor que construiu esse perfil foi o general Bayma Denys e é a eminência parda por trás do atual presidente da associação, o bacharel em Relações Públicas Lício Ramos de Araújo. Hoje, aos 81 anos, Denys influencia a Acan. A presença de militares e civis ligados à ditadura e a ESG, não causa nenhum constrangimento. A verdade é que "não existe vontade política para que esses arquivos sejam abertos", constata Cecília Coimbra, do Tortura Nunca Mais.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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