quinta-feira, 17 de julho de 2008

A primazia da Constituição


Como leitor assíduo e admirador incondicional do blog, confesso que já estava ficando preocupado com o tom excessivamente "protogênico", digamos assim, dos posts sobre a Operação Satiagraha.
Mas ganhei novo alento ao ler a postagem do irretocável artigo do professor e mocorongo Helenilson Pontes - O valor da Constituição. Em vez de afastarem os delegados do caso, deveriam obrigá-los a lerem mil vezes o referido artigo. Assim, aprenderiam algo de muito útil.
Todos queremos, é lógico, que os criminosos - banqueiros ou não - sejam condenados e paguem pelos seus crimes. Mas todos temos que compreender que o acusado - seja ele quem for, ricaço ou pé-rapado - tem direitos que a Constituição garante, como, por exemplo:
* "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" (e processo significa: acusação, defesa, instrução probatória, sentença final e recursos. Inquérito policial não é processo, é mera peça informativa - ou informatio delicti, no juridiquês - que pode ou não embasar a denúncia que deflagra o processo. À parte de ser peça perfeitamente dispensável, o inquérito policial não tem o condão de absolver nem condenar quem quer que seja, embora seja útil a este desiderato, quando elaborado com exatidão);
* “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (o que desautoriza a negativa de dar vistas dos autos ao advogado do acusado, mesmo na fase inquisitorial, pois esta não é e nem pode ser mais importante do que a fase processual, e se a Constituição garante a ampla defesa no mais, que é o processo, garante obviamente no menos, que é o inquérito);
* "são inadmissíveis, no processo, as provas colhidas por meios ilícitos" (pelo que irão inexoravelmente para a lata do lixo todas as escutas e gravações não autorizadas ou que extrapolem os limites da autorização quando previamente dada, ainda que façam ou tenham feito as delícias dos veículos de comunicação de massa);
* "o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado" (o que torna legítimos os esforços da família e do advogado para saber do que se está sendo acusado e quais as provas da acusação que a autoridade policial tanto teima esconder);
* "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral" (o que desautoriza não só a tortura física, mas também a tortura moral como a imposição de algemas a quem não oferece resistência alguma à prisão, como é o caso de alguém sonolento arrancado da cama pelos agentes, só de pijama, às seis horas da manhã; bem como a exposição forçada do preso perante câmeras de TV e fotógrafos de jornais e revistas - e esta exposição, adianto logo, não tem nada a ver com a liberdade de Imprensa, mas, sim, com a "execração pública" de um acusado que ainda não foi sequer formalmente denunciado, quanto mais julgado e condenado criminalmente).
Todos queremos, é claro, a punição dos criminosos - ricos ou pobres -, mas não temos o direito sequer de tergiversar sobre a regra de que - "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória" (e antes que me acusem de incoerência, ressalto logo que a presunção de inocência tem tratamento diferenciado no Direito Penal e no Direito Eleitoral, pois naquele prepondera a garantia individual, e, neste, a garantia da sociedade).
Todos devemos entender que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". No ordenamento jurídico nacional, a prisão temporária e a prisão preventiva não são penas nem castigos. São medidas cautelares, de cunho processual e não condenatório, decretáveis somente se e quando necessárias - e tal necessidade deve ser fundamentada e calçada em motivos concretos, não em meras ilações ou suposições.
A "espetacularização" vem transformando a prisão temporária, tanto quanto a prisão preventiva, em nova modalidade de prisão, não prevista em nosso ordenamento jurídico: a prisão para execração pública do acusado, com inegável requinte de crueldade, pois submete imediatamente o preso a um prematuro e desnecessário vexame público, como se essa fosse a infeliz e sardônica contribuição brasileira ao livro Dos Delitos e das Penas, com o qual o marquês italiano Cesare Beccaria Bonesana revolucionou o Direito Penal no Século XVIII, ao desnudar o iníquo sistema de penas desumanas e degradantes que repugnam à consciência jurídica em qualquer parte do mundo, exceto, é claro, nas sociedades fundamentalistas.
A turba "exaltada pela vingança" precisa entender que a sociedade, violentada pelo crime, "não se vinga, mas defende-se; não persegue o acusado, busca-o", e que essa mesma sociedade, ao presumir a inocência do acusado, "não quer mais eloqüência que não seja a da verdade, nem mais força que não seja a da justiça" - como ensinava o velho Timon, Vizconde de Comerlion, em seu "Libro de Los Oradores".
Em que pesem os argumentos alinhavados por procuradores que entendem ter a decisão do presidente do STF suprimido instâncias ordinárias - pelo que se aventa até levar Mr. Mendes às barras da ONU, que, por sinal, como Milton Campos em Minas, devia ter enviado a Belém o "trem pagador" para solucionar os problemas da Santa Casa de Misericórdia, em vez de mandar uma comissária fazer pose para fotógrafos e câmeras de TV, sem qualquer resultado prático que previna a morte de recém-nascidos -, não passa despercebido que o habeas-corpus em favor do banqueiro já estava lá no Supremo, porque denegado nas instâncias inferiores, e que a "pulverização" ou a "renovação" dos decretos de prisão, bem como de suas "justificativas", cheiram a "chicana judicial", prática que não tem guarida na lei, precisamente porque se presta, de forma oblíqua e dissimulada como os olhos da Capitu, para desafiar a decisão superior que porventura venha a ser dada, e isto é tão condenável quanto qualquer "manobra" de um advogado chicanista.
Queremos, é claro, que todos os criminosos - de grosso ou de nenhum calibre social - sejam condenados. Mas, quando um Protógenes se transforma em "protagonista" do inquérito, fazendo do pronome pessoal "eu" o objeto direto da peça informativa (leia-se, a propósito, o calhamaço do relatório assinado pelos delegados, repleto de erros de português e raciocínios tortuosos, erráticos, obscuros, quando não nitidamente mirabolantes); quando o acusador abusa da adjetivação que não prova o crime, não o torna mais grave e não se coaduna com a cientificidade do Direito, mas revela um certo transtorno mental que reclama tratamento psiquiátrico - o mais provável é que o inquérito venha a ser pulverizado quando, no tempo devido, for submetido ao crivo do contraditório, frustrando, assim, as expectativas da sociedade. E, se isso ocorrer, a culpa, com certeza, não será de Mr. Mendes.

Post scriptum - Há tempos que me pergunto: pode a Polícia Federal "batizar" suas "operações" com nomes exóticos, estapafúrdios, estrambóticos, irônicos e solfejados com requintes de perversidade? Creio que não. A meu ver, isso atenta contra pelo menos dois dos mais elementares princípios constitucionais que regem a Administração Pública - o da impessoalidade e o da legalidade -, cuja inobservância caracteriza inequívoco ato de improbidade administrativa, nos exatos termos do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992. Mas isso é tema para um outro e mais aprofundado estudo.

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Luiz Ismaelino Valente é procurador de justiça aposentado e advogado

2 comentários:

Anônimo disse...

Bemerguy,

Excelente o artigo do dr. Valente. Disse tudo e mais alguma coisa. Também, com um sobrenome desses...

Sigo meus artigos exatamente na mesma linha de raciocínio.

Espero que ele venha a contribuir mais para o blog, pois assim repartiria seus conhecimentos para pessoas que, como eu, tanto necessitam.

Abraços a você e ao dr. Valente.

Roberto Duarte da Paixão Junior

Poster disse...

De fato, Roberto.
Excelente.
Abs.