A absolvição do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura da acusação de ser o mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang, em fevereiro de 2005, no município de Anapu, é um equívoco, um escárnio, um deboche. Uma absolvição dessas é um passaporte, é o green card para que se mate impunemente por aí.
E diga-se logo que quem absolveu o fazendeiro foi a sociedade. O Tribunal do Júri é, literalmente, o povo no poder. O povo, representado pelos membros do Conselho de Sentença, é que é o juiz. No Júri, como todos sabem, o magistrado, aquele que veste a toga, não julga. Apenas conduz o julgamento e lavra a sentença. Quem julga são populares.
Uma decisão dessas é inalcançável, intangível pelo bom senso. É esdrúxula. Inacreditavelmente esdrúxula. É preciso que digamos isso sem qualquer receio, porque decisões judiciais, como aqui já se afirmou várias vezes, devem ser cumpridas, rigorosamente cumpridas. Se for o caso, decisões judiciais precisam ser imediatamente cumpridas.
Mas decisões judiciais, quaisquer que sejam, até as que eventualmente sejam proferidas pela mais alta Corte de Justiça de um País, podem ser discutidas, contestadas. São passíveis que discordemos delas. Frontalmente.
Ninguém pode conceber que o executor de um crime como o que tirou a vida de uma pessoa contrarie tudo o que disse anteriormente e assuma o crime sozinho. É implausível, é inconcebível que Rayfran das Neves, que confessadamente apertou o gatilho, tenha agido inspirado por motivações pessoais, sem que terceiros o tenham induzido a praticar o crime.
Em resumo: um crime como o que vitimou a missionária, as circunstâncias em que ocorreu o homicídio, o perfil da vítima, sua atuação no meio em que vivia, os interesses que contrariava, além de fartos elementos colhidos em provas testemunhais e materiais no curso da instrução criminal, um crime como esse, portanto, jamais seria consumado se alguém não mandasse, se alguém não estipendiasse, não financiasse os executores.
Essa absolvição deveria ensejar um amplo debate sobre a instituição do Tribunal do Júri. No Brasil, o Júri Popular existe no Brasil desde 1822, instituído por decreto imperial. Mais remotamente, o Tribunal do Júri – inicialmente chamado de Tribunal do Povo - provém do Século XIII, logo depois que o Concílio de Latrão aboliu as ordálias.
Mas não é bem a história sobre o Tribunal do Júri que interessa. Interessa, isso sim, o formato dos Júris Populares.
Quem já teve oportunidade de assistir a um Júri provavelmente já viu até jurados cochilarem. Ou já viu jurados apresentarem feições indicativas de que ele está pensando em tudo – até no próximo clássico de futebol de sua cidade -, mas não está dando a mínima para advogados e membros do MP que fazem performances à sua frente. A aparência de jurados, nessas ocasiões, é de completo, absoluto alheamento, de completo desinteresse pelo caso que está sendo julgado, de completo enfado – expresso em bocejos – muitas vezes.
Terminado o julgamento, os jurados vão para uma sala, reúnem-se ali com o juiz, que lhes formula umas perguntas – ou quesitos, como se chama. E não são quaisquer perguntas. São perguntas técnicas. É verdade que a formulação deve ser a mais simples possível – porque os jurados em regra são leigos em Direito -, mas são perguntas técnicas. É preciso que o jurado tenha noção sobre o que é dolo, o que é culpa, o que é “qualificadora” disso e daquilo, o que é co-autoria etc. etc.
Ninguém está advogando que o Tribunal do Júri seja constituído por iluminados, por sabichões que nem precisariam escutar as explicações didáticas, primárias que o juiz oferece para se chegar ao veredicto. O que se questiona é a eficácia de julgamentos como este, que causa estupefação. Porque não é todo dia que um sujeito é condenado a 30 anos e no julgamento seguinte é absolvido porque o executor se desdiz para assumir toda a culpa. Sozinho.
Há décadas, senão há milênios debate-se a eficácia do Júri Popular. Pois esse feito protagonizado pelo Tribunal do Júri que absolveu o fazendeiro da acusação de mandar matar a missionária americana reforça que o debate é mais do que pertinente.
É pena que, em meio a tantos debates, não seja possível reverter vidas que foram ceifadas.
3 comentários:
Meu caro, não há nada mais simbólico e ritualístico no mundo do Direito do que o tribunal do júri. E a estrutura que lhe foi conferida pelo legislador, há tantas décadas, contribui para a condição em que ficam os jurados.
Julgamentos longos e arrastados cansam qualquer um. Como recriminar os que bocejam e até cochilam? Os coitados têm que ficar de costas para o público, com o réu de costas para eles. Vêem apenas o juiz, o promotor e a defesa. Não podem comunicar-se entre si, nem nos intervalos. Ser jurado é uma agressão psíquica, que poderia ser minimizada caso a lei, se alterada, prevesse procedimentos mais breves e dinâmicos.
Por fim, há o fato de que os cidadãos chegam ao conselho de sentença sem nenhum treinamento, que lhes mostre a grandeza do que fazem ali. Nesse caso, a culpa é do Estado, que podia e devia promover essas capacitações.
O tribunal do júri é uma instituição democrática. Mas isso não significa que as pessoas devam ser largadas ao Deus dará. Também lastimo o veredito, nesse julgamento, só não acho que devamos crucificar esses jurados. Trabalho com essas questões e sei que decidir o destino de alguém não é nada fácil.
Sua apreciação é esclarecedora, pertinente e correta.
São, certamente, os mesmos sentimentos e pensamentos da opinião pública.
Valeu!
Olá, Yúdice.
Você tem razão.
Por isso é que discuto a "eficácia" do Tribunal do Júri, conforme mencionado no post.
É preciso mudar. E mudar logo. Para que os bocejos, enfados e desinteresses e destreinamentos não continuem, arriscando o Júrio Popular a absolver culpados e condenar inocentes.
Vou postar seu comentário na ribalta, mais tarde.
Abs.
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