sábado, 15 de março de 2008

A favor das medidas provisórias


No sistema de tripartição de poderes, o Executivo é que detém a maior fatia. Cabe a ele, no caso da União, por meio do presidente da República, a prática dos atos de chefia de Estado (política externa), de governo (política interna) e de administração (de gestão).
No Brasil, esse poder tem, ao lado da função típica de administrar, a atribuição de legislar. Trata-se da hipótese em que é permitido ao presidente da República editar medidas provisórias, com força de lei, desde que haja relevância e urgência nas matérias em que o seu uso não seja proibido (art. 62 da CF).
Depois de editada, ela deve ser imediatamente submetida ao Congresso Nacional. Aprovada nas duas casas legislativas (Câmara e Senado), é convertida em lei promulgada pelo presidente do Senado, que por sua vez a remeterá ao presidente da República para publicação.
Se nada disso ocorrer, após 45 dias da sua publicação ela entrará em regime de urgência, restando a cada uma das casas legislativas 15 dias para apreciá-la. Durante esse regime, as outras deliberações da Casa onde a medida estiver tramitando ficarão suspensas (trancamento de pauta).
Questiona-se se esse trancamento não representaria intervenção do chefe do Poder Executivo nos assuntos do Legislativo, eis que a enorme quantidade de medidas provisórias editadas impõe a este último a paralisação das suas demais atividades. Discute-se ainda a inexistência de conceitos objetivos para o significado das expressões "relevância" e "urgência" (requisitos para edição daquelas medidas), cuja ausência favoreceria descontrolada multiplicação. Também acusam o Judiciário de intervencionismo, na medida em que a análise daquelas duas condições, quando tal Poder é provocado a se manifestar, transforma o julgador em legislador positivo, circunstância vedada em nosso sistema jurídico. Por fim, há os que entendem pela extinção da medida provisória. Vamos analisar cada uma dessas opiniões, a iniciar pela suposta intervenção provocada pelo trancamento.
Sem dúvida que esse regime de urgência constitucional engessou parte da atividade parlamentar, protagonizado, principalmente, pelo número excessivo de medidas provisórias editadas. Porém, isso não chega a representar uma forma de intervenção de um poder sobre o outro. Primeiro, porque o Legislativo não tem só a faculdade de afastar a admissibilidade quanto aos requisitos de relevância e urgência, como também de decidir sobre o mérito da matéria, rejeitando-a. E segundo, porque esse resultado decorre do desejo da maioria, cuja vontade nasceu do próprio sistema democrático.
Sobre a inexistência dos conceitos para urgência e relevância, acreditamos que nada adiantaria estender suas definições além daquelas constantes nos dicionários, eis que persistiria ao infinito o debate em torna das suas diferentes interpretações.
Quanto ao intervencionismo do Judiciário, podemos afirmar que não existe. O princípio segundo o qual nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluído da apreciação desse Poder baseia tal entendimento. Acrescente-se que é sua função típica distribuir a justiça, mesmo quando prejudicial aos interesses das partes. A propósito, eventual julgamento sobre relevância e urgência em medida provisória, bem como acerca da sua inconstitucionalidade, não revela forma de intervenção porque, nesses casos, não se avaliam critérios de conveniência e oportunidade, este sim impossíveis de serem analisados pelos magistrados. Portanto, afastado o argumento que transformava o juiz em legislador positivo.
Não somos pelo fim das medidas provisórias, como sustentam alguns. Um dos meios para refletir esse tema é indagar qual recurso legislativo estaria disponível ao gestor da coisa pública - abstraídas tais medidas - para tratar situações relevantes e urgentes. Se ele não dispuser de expedientes para solucionar o problema, não estaríamos lhe dando carta branca para lançar mão de meios ilegais ou menos democráticos para resolvê-los? Certamente que sim. No entanto, é bom lembrar que a necessidade não obedece a princípios, e aí a coisa poderia complicar.
Por outro lado, não visualizamos risco de voltar ao sistema anterior à Emenda Constitucional 32, quando as medidas provisórias eram reeditadas indefinidamente. Tampouco de vê-las aprovadas pelo decurso de prazo, como era feito ao tempo do decreto-lei, pois acreditamos que a base da autoridade do governo deve ser hoje a vontade do povo.
Se a solução da questão estiver no número excessivo de medidas provisórias, então que se reduza mais o campo material de atuação do presidente da República. Outra sugestão seria aperfeiçoar o processo legislativo federal, com vistas a acelerar a tramitação dos projetos de lei ordinária, cujo âmbito engloba o das medidas provisórias. No entanto, será que nossos parlamentares querem isso?
Somos a favor das medidas provisórias porque achamos que são imprescindíveis para o atual estágio da democracia brasileira. Contudo, temos a opinião segundo a qual os excessos no seu uso devem ser rigorosamente controlados pelo Legislativo e pelo Judiciário, pois nisso consiste o verdadeiro equilíbrio entre os poderes da República.
Temos certa afeição pelas medidas provisórias, o que não significa minimizar a democracia, e até arriscamos a dar a seguinte informação: não há vedação para que os demais entes federativos (Estados, Distrito Federal e municípios) utilizem dessa espécie normativa. Basta inseri-la nos contextos das respectivas Constituições ou leis orgânicas, nos moldes traçados pela Constituição da República.Vamos, pois, acreditar nessa espécie normativa como fonte do direito e do desenvolvimento nacional. Quanto ao atual excesso na edição de medidas, quem sabe um dia o presidente da República se convença, num momento de lucidez democrática, que o afã de governar não está acima do direito do cidadão em concorrer para a formação das leis, incluídas aqui a vontade das minorias, hoje intituladas forças de oposição.

Roberto da Paixão Júnior é especialista em Direito do Estado
imcpaixao@superig.com.br

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