sábado, 12 de janeiro de 2008

O direito de mentir e o juiz


ROBERTO DA PAIXÃO JÚNIOR

O Direito apresenta situações estranhas. Vejamos o caso do interrogatório do réu em juízo.
O Código de Processo Penal (CPP), com a redação dada pelo Decreto-Lei nº 3.689/41, dizia que o silêncio do réu poderia ser interpretado "em prejuízo da própria defesa".
Veio, então, a Constituição da República de 1988 e no seu art. 5º, LXIII, preceituou que o preso deve ser informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado.
Mesmo a partir disso, muitos juízes continuavam a formar seus convencimentos com base naquele antigo decreto, embora parte da jurisprudência e a totalidade da doutrina acentuassem, com razão, que referido dispositivo não havia sido recepcionado pela norma constitucional vigente.
Para tirar a razão daqueles magistrados, veio a Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, que alterou tal decreto-lei para fazer acrescentar, no art. 186 do CPP, que o silêncio, além de não importar em confissão, não poderia ser interpretado em prejuízo da defesa.
Resulta disso, a obrigação atual do juiz abstrair dos seus argumentos que o silêncio colaborou para condenar o réu.
Mas se, no lugar de calar-se o réu decidir mentir, teria direito ao mesmo tratamento dado ao silêncio? O Supremo Tribunal Federal (STF) interpreta que sim.
Conforme citado, o CPP de 1941, antes da modificação indicada, obrigava o réu a produzir prova contra si. Vimos também que a Carta Política de 1988 modificou essa circunstância porque permitiu ao réu o direito de permanecer calado.
Sem entrar no campo ético, já que por vezes o legal não é moral, o fato é que o STF, órgão que dá a última palavra em matéria constitucional no Brasil, entende que o réu pode mentir. E isso desde 1997, isto é, anteriormente à modificação havia no CPP, consoante podemos verificar no Habeas Corpus nº 75257/RJ, que teve como relator o ministro Moreira Alves.
Naquela ocasião, o indiciado em inquérito havia negado em juízo que tivesse assinado os termos de declarações prestados na polícia, ou seja, que não seriam suas as assinaturas ali lavradas. Referida corte declarou não configurado o crime do art. 299 do CP (falsidade ideológica) pelo qual o réu foi denunciado, pois se o indiciado possuía o direito de ficar calado e até mesmo o de mentir para não incriminar-se com as declarações prestadas, não tinha ele o dever de dizer a verdade. A ação penal, no caso, foi anulada por falta de justa causa.
Portanto, o réu tem, hoje, de acordo com o STF, a garantia individual de calar ou mentir diante do juiz, seja pelo direito de não se auto-incriminar ou pelo princípio da presunção de inocência.
Qual deve ser então a postura do juiz criminal ao se deparar com o direito de mentir? O jurista argentino Raúl Zaffaroni tem a resposta. Acerca do compromisso do magistrado ele ensina: "No Estado de Direito, juiz criminal não é policial de trânsito; não é vigia da esquina; não é zelador do patrimônio alheio; não é guarda do sossego de cada um; não é sentinela do Estado leviatânico. Não tem o encargo de bloquear a maré a montante da violência ou refrear a criminalidade agressiva e ousada: o Estado verdadeiramente democrático reservou, para tais fins, outros órgãos de sua estrutura governamental. A missão do juiz criminal é outra: é exercer a função criativa nas balizas da norma incriminadora; é infundir, em relação a determinadas normas punitivas, o sopro do social; é zelar para que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial dos direitos do cidadão."

Roberto da Paixão Júnior é especialista em Direito do Estado

Um comentário:

Anônimo disse...

Roberto.

Parabéns pela matéria.

Continue escrevendo seus artigos que são excelentes.

Saudações.

Ricardo Paixão - Advogado