quarta-feira, 20 de maio de 2020

Jorge Bastos, 72 anos. A Covid-19 o abateu. Ele não é um número. É um rosto.


Perdi nesta quarta-feira (20) um dos meus cunhados para a Covid-19.
Antônio Jorge Alves Bastos.
Era bancário. Tinha 72 anos, mas nem parecia.
Gozava de excelente saúde.
Preservava-se, fazia sempre os necessários exames de rotina, não relaxava na observância de todas as cautelas para manter-se com a melhor das vitalidades.
Nos tempos pré-pandemia, caminhava na Doca.
Era um grande pé de valsa. Eu, quando o via dançar, tinha a impressão de que semicerrava os olhos, desfrutando do prazer de rodar pelo salão.
Adorava contar histórias.
Contava-as com uma riqueza de detalhes impressionante, sobretudo quando se lembrava com saudades do Despachado, a fazenda que meu sogro teve na região do rio Ituqui, entre Santarém e Monte Alegre, no oeste do Pará.
Descrevia paisagens, mencionava datas e nomes de dezenas de pessoas – sobretudo dos trocentos parentes -, recordava-lhes os hábitos, relatava aventuras, tudo.
Era uma espécie de memorialista da família – com uma ótima memória, como convém aos memorialistas.
A última vez que o vi com sua esposa, minha amiga Ivete, foi no dia 26 de janeiro deste ano, nos festejos de 60 anos de minha mulher.
Quando que alguém de nós poderia, naquela noite, imaginar que ele nos deixaria quatro meses depois?
Vivemos uma tragédia, meus caros.
Devemos – ou deveríamos – estar conscientes disso.
Vivemos uma tragédia sanitária de dimensões inauditas, assustadoras, tenebrosas, horrorosas.
Nas tragédias, sobretudo nas que ceifam vidas, milhares de vidas, chega-se a um ponto em que começamos a ler, ver e ouvir números todo dia, a todo minuto, a toda hora.
E vamos reagindo diante dos números – de infectados, de mortos – como se isso fosse a coisa mais banal do mundo.
Até que se vai um amigo, um vizinho, um colega de trabalho.
Até que se vai um familiar.
Aí tudo muda.
Quando números viram rostos, quando números viram nomes que nos são próximos, a tragédia assume outros contornos.
Odeio matemática. Mas consigo me salvar fazendo as quatro operações, a regra de três, essas coisas básicas.
Fiz umas contas, para transformar essa tragédia familiar em números.
Em relação aos 162 mortos no Pará de Covid-19, segundo dados oficiais da Sespa colhidos até ontem, Jorge representava 0,617283950617284%.
Em relação aos 17.983 mortos no Brasil inteiro, Jorge equivale a 0,0055608074292387%.
Em relação às 323.286 de vítimas fatais em todo o mundo, até esta data, ele representa 0,0003093236329442042...% (e outros dígitos).
Se, no dia 26 de janeiro de 2020, alguém dissesse ao Jorge que, dali a quatro meses, haveria uma pandemia com esta e que ele teria 0,617283950617284%, 0,0055608074292387% ou 0,0003093236329442042...% de possibilidade de morrer, ele certamente compararia essa possibilidade à de um grão de areia, no Afeganistão, ser levantado pelo vento e vir se acomodar no teto do prédio onde ele morava, no bairro do Reduto, em Belém.
Se dissessem a mesma coisa a mim, eu também agiria da mesma forma – com descrença quase absoluta.
Se dissessem a mesma coisa a você, provavelmente também a reação seria idêntica.
Mas acontece.
E aconteceu.
Saudável, plenamente saudável, Jorge contraiu essa doença provavelmente numa ida a supermercado, piorou, ficou pouco mais de dez dias numa UTI e não resistiu à devastação que esse vírus deflagrou no seu organismo.
Esse é um dos milhares de exemplos de que não vivemos uma pandemia qualquer.
Não vivemos uma pandemia como qualquer outra.
Estamos diante de uma tragédia que tem ceifado muitas vidas humanas.
Vidas que, perdidas aos milhares, vão se transformando na crueza, na frieza, na gelidez, na impessoalidade que os números representam.
Até que os números viram um rosto.
Como o de Jorge.
Viram um nome.
Como o de Jorge.
E aí choramos.
Tomara que nossas lágrimas molhem e depurem nossas consciências, para que possamos, da forma menos pior possível, contribuir – até mesmo nos preservando ao máximo – para que essas dores não se multipliquem.

3 comentários:

Unknown disse...

Este descaso com vidas que estão se perdendo, só acabará quando vidas de poderosos se forem. Estamos perdendo parentes de amigos, parentes, enfermeiros, médicos pela ganância, por politicagem, por covardia. Como não ficar desacretidado com o nosso país por meio a negligência de muitos. Que Deus tenha misericórdia da nossa nação. Meus sentimentos a família Bastos, pela perda irreparável.

Lucinha Abelhinha disse...

Descanse em paz, meu primo...não te via desde criança lá em Santarém, os nossos caminhos foram diferentes, mas lembro muito de você...siga com Deus!

Unknown disse...

Também sou amante da dança e por diversas vezes nos encontramos pelos bailes da vida. Descanse em paz colega.