quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A construção da fé


A fé, assim como todo conhecimento, também é gerada e desenvolvida em nossa mente. Independentemente de valoração sobre certo ou errado, o sentimento de crença é um processo mental. E subsiste mesmo para os ateus, quando creem que nada existe além da matéria.
Ao nascermos, já trazemos informações genéticas sobre modos de crença. Porém, nossa mente ainda está aberta para um processo de formação. Desse modo, se um brasileiro for criado desde o nascimento por uma família hindu, haverá de abraçar os valores do hinduísmo. Haverá de incorporá-los em sua mente de tal sorte que o cristianismo venha lhe parecer uma religião estranha. É este ensaio que faço diariamente para aceitar diferenças. Estou convencido de que a noção do que é certo ou errado existe muito em função da cultura em que estamos inseridos.
Veja, aqui não estou investigando conceitos divinos absolutos. Não estou olhando de cima para baixo, como a partir da perfeita visão que Deus tenha dos movimentos da humanidade sobre a Terra. Não. Estou analisando de uma perspectiva terrena, onde o nosso cenário se resume à superfície do globo e, de modo cognitivo, nossa mente é o laboratório da fé.
Olhemos as multidões que visitam Meca e Jerusalém todos os anos. Vejamos o rio Ganges tomado de religiosos, num ritual que nos cheira insalubre. Que mundo de valores os impulsiona? A fé. Para o primeiro grupo, trata-se de um lugar sagrado, onde a Pedra Negra teria sido entregue pelo anjo Gabriel a Abraão. Para o segundo, a Terra Santa, onde se pode visitar a casa de Pedro e o Santo Sepulcro? Quem garante? Como pode ser que um povo, descrente no Messias, tenha se esforçado tanto para preservar esses lugares? Porém, seja verdade ou não, turistas religiosos se emocionam com a visitação. Relatam experiências interiores. Convertem-se. Onde está essa fé? Na mente de cada visitante.
No meio dos evangélicos, existe o costume de orar com olhos fechados e fazer um convite à conversão no final dos cultos. Para alguns, trata-se de algo sagrado, ou, no mínimo, um modelo de fé. Na verdade, ambos frutos de construção. Orar de olhos fechados é natural para uma religião que não adota imagens e prega um relacionamento com Deus apenas em espírito. Porém, o que não se percebe é que fechar os olhos produz mudanças em nossa mente. Um exame de mapeamento cerebral se altera com um leve piscar de olhos. De repente, orar com olhos abertos pode parecer algo vazio e despojado de fé para alguns. Na verdade, é coisa da nossa cabeça.
Sobre o convite nos cultos, não se trata de algo formatado por Jesus. Embora Ele tenha dito certa vez "Vinde a mim", não estava criando modelos. Essa forma de convidar pessoas à conversão nasceu com Charles Finney (1792-1875), pregador inglês. Depois de pregar certa ocasião, disse à audiência: "Agora, preciso conhecer suas reais intenções. Quero que aqueles que resolveram tornar-se cristãos se levantem; e que, ao contrário, fiquem como estão!". Ninguém se mexeu. Finney então passou a dizer que lamentava que houvessem feito a escolha de rejeitar a Cristo. Mas isso não era verdade. Dia seguinte, todos voltaram à igreja e deram bons testemunhos de conversão.
No meio católico, esse processo de formação da fé fica bem evidente com o elemento corda do Círio. Introduzida na procissão para proteger a berlinda, a corda ganhou valor ao ponto de se tornar um espaço de sacrifício quase desumano. Pessoas acreditam que acompanhar a procissão ali é o auge da romaria. Depois, cada qual apanha seu canivete e, com risco de ferir seu irmão, corta a fita isolante em milhares de pedacinhos. A corda vira amuleto. Gera fé. As novas gerações já nascem acreditando assim. Mas, onde está essa fé? Na cabeça das pessoas. É algo construído.
Há poucos meses, conversei com um amigo evangélico que se dizia sem tempo para orar. "Levante-se pela madrugada. O Céu está sempre disponível. Lá, não há noite!", aconselhei. Mas ele me disse que não dava certo. "Perco o sono!", foi sua resposta. Insisti que ele podia orar, sim, bastavam algumas palavras. Não precisava lavar o rosto nem ligar a luz. Nada o convenceu. Então me disse: "Não dá certo porque só consigo orar de depois de cantar três hinos da Harpa Cristã e ler a Bíblia". Sem saber, ele estava reproduzindo um condicionamento de membros da Assembleia de Deus, de sempre começar os cultos com três números de seu livro de cânticos. Onde está essa fé? Apenas na cabeça de quem a tem.
Precisamos entender o processo de formação da fé. Isso nos fará refletir sobre muita coisa. Em termos humanos, nada é absoluto. Vez ou outra, precisamos imaginar a fé também do ponto de vista divino. Como Deus enxerga os nossos movimentos sobre a Terra? Tomara que muita coisa exista além da nossa cabeça!

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RUI RAIOL é escritor (www.ruiraiol.com.br)

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