Juíza eleitoral de Santarém decidiu na semana passada restringir a liberdade de informação jornalística de dois veículos. Um deles é o jornal O Estado do Tapajós. O outro é o Blog do Jeso.
Convém ressaltar, antes de qualquer juízo – e vale ressaltar que também aqueles que não são juízes podem formar seus juízos -, que decisões judiciais devem ser cumpridas. Isso é tão antigo quanto as sociedades que se amparam no Estado Democrático de Direito.
Mas convém igualmente ressaltar – e ressaltar com toda a ênfase, com a mais decidida clareza - que decisões judiciais devem, sim, ser discutidas. Devem ser amplamente debatidas. Decisões judiciais devem servir de base para que se formem convicções – contrárias ou favoráveis a elas mesmas.
Decisões judiciais são passíveis de críticas em qualquer instância – na primeira, na segunda, na terceira, na quarta e até na décima instância, se porventura houvesse. Opor-se a uma decisão judicial não afronta direito algum. Ao contrário, é a confirmação de que existe Direito.
Afinal, o que é o recurso senão o debate, o inconformismo, a crítica, a irresignação, a insatisfação contra o pronunciamento da instância anterior? O que é o recurso senão a confirmação de que o Direito – com todos os seus postulados, os seus princípios e os seus instrumentos – só se manifesta vivo, dinâmico, operante quando permite o confronto de vontades que caberá ao Judiciário mediar e resolver?
Pois é. Firme-se, portanto, a convicção de que decisões judiciais existem para ser cumpridas. E devem mesmo ser cumpridas. Mas delas pode-se discordar. E discordar à vontade.
Decisão judicial equivocada
Nesse sentido é que aqui se formou a convicção de que a decisão do Juízo Eleitoral de Santarém é equivocada. A decisão é errada porque não aproveita ao anseio de todos – blogueiros ou não – de exercerem livremente o seu direito a emitir opiniões e divulgar informações de interesse público. A decisão não conflui para um ambiente plural em que a informação e a opinião transitem livremente.
Se mantida a decisão liminar da juíza – primeiro no mérito, por ela mesma, depois no Tribunal Regional Eleitoral, caso as duas demandas cheguem até lá -, convém que todos os blogs, todos os jornais e demais veiculam sigam o que aquela promotora eleitoral paulista recomendou como lição para que não se fira a legislação eleitoral. Ensinou ela – pessimamente, caricatamente, mas ensinou: “Você poderia fazer o perfil do candidato... Quem é Marta Suplicy? É uma mulher, psicóloga, trabalhou, fez isso e fez aquilo. Gosta de cachorro, gosta de boxe, gosta de rock and roll, gosta de poesia. Agora, se ela falar: ‘Eu vou mudar o trânsito em São Paulo’, não pode.”
É isso mesmo que devemos fazer nesta jornada eleitoral? Devemos evitar comparações e críticas? Devemos evitar menções a A ou B? Devemos ficar nos “abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim” – como os versos da música do Vinícius – ou devemos exercer nosso direito de opinar e informar como bem entendermos?
O “bem entendermos” mencionado é isto mesmo: como bem entendermos, da forma, da maneira como melhor nos convier. Mas este, evidentemente, não é um direito absoluto. Não é e nem poderia ser. Se alguém não concordar com o que informarmos, se alguém entender que nosso direito de opinar ultrapassou os limites do razoável, então que nos peça primeiro o direito de resposta; depois então, caso necessário, procure o Judiciário para discutir direitos supostamente violados, inclusive eventuais lesões à honra.
Mas é inegável que o cerceamento à liberdade de informar e de emitir opiniões é um mal, sobretudo em períodos eleitorais. E a lei eleitoral, que rege as disputas, tem uma carga de subjetividade enorme, fortíssima, que tanto dá ensejo a proposições risíveis, como a formulada pela promotora paulista, como produz situações sui generis.
É o caso, por exemplo, de garantir-se nos programas eleitorais o direito de resposta proporcional ao agravo. Mas qual é a proporção que melhor se afeiçoa às circunstâncias. Em cada cabeça, uma sentença.
Qual o tempo para a defesa do “ladrão”?
Suponhamos, por exemplo, uma situação em que Fulano, ao usar seu tempo no programa eleitoral, diz simplesmente o seguinte: “Beltrano é um ladrão”. Só isso.
Qual o direito que Beltrano tem? Tem o direito de aparecer no programa de Fulano para se defender em tempo condizente com a ofensa recebida. Mas como mensurar isso? Juízes haverá para os quais bastará que Beltrano compareça ao programa do ofensor e diga apenas isto: “Eu não sou ladrão”.
Bastará apenas isso? É justo, então, que alguém chamado de ladrão veja-se obrigado a dizer apenas que não é ladrão? Ladrão é termo duro, pesado, pejorativo, negativo, ofensivo à honra e à dignidade de qualquer um. Quem chama o outro de ladrão faz recair sobre o oponente a obrigação de defender-se da acusação. Haverá alguém – no caso, quem foi chamado de ladrão – que se sinta suficientemente satisfeito apenas em dizer em dois ou três segundos que não é ladrão? Ou precisará de um minuto, de cinco, de dez ou de 50 minutos?
Esta é a lei eleitoral – incongruente, subjetiva, sempre a desafiar o bom senso. Esta é a lei eleitoral, que deve disciplinar disputas sem afrontar princípios constitucionais consagrados, como a da livre informação.
E Constituições, sabem todos – inclusive os que não são juízes – estão no topo do ordenamento jurídico. Se estão no topo, tudo o mais se subordina a elas. Inclusive o Código Eleitoral, os interesses partidários e outros interesses de qualquer ordem.
Receitas no lugar de informação?
A disseminar-se o entendimento do Juízo Eleitoral de Santarém, estaremos todos nós, jornalistas, condenados a publicar, durante a campanha eleitoral, receitas culinárias ou então poemas de Camões, como fazia O Estado de S.Paulo durante os anos de chumbo da ditadura, para demonstrar que daquele espaço fora suprimida uma notícia por determinação da censura.
Será o cerceamento à livre manifestação – aí incluída a crítica, o elogio, a comparação, seja o que for – condizente com um processo eleitoral que se pretende também livre, límpido, transparente e democrático?
O que queremos?
Queremos saber sobre o cachorro da preferência dos candidatos em Santarém ou queremos a comparação entre suas propostas, queremos saber o que fizeram, o que fazem e o que farão?
Queremos mesmo o quê, para que a democracia, mais do que um conceito – bem abstrato, por evidente -, seja uma prática efetiva, visível, palpável e concreta inclusive nas decisões judiciais?
Queremos o quê, afinal?
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