sexta-feira, 7 de junho de 2013

Ponto de mutação das diferenças


Sem dúvida, vivemos um tempo de mudanças. Nossa história de liberdade é recente. Independência, Lei Áurea e República não têm duzentos anos. Direitos e garantias individuais farão jubileu de prata neste 2013. Religião, sexualidade e economia são itens em franco debate. O tecido social brasileiro está sendo formado. Com efeito, somos ainda um país de diferenças.
Gostaria de conversar com você sobre esse fenômeno brasileiro. Para isso, conto com sua sensibilidade, pois o objetivo aqui é apenas de reflexão mesmo. Individualmente ou em grupos, devemos ser respeitados. Abusos e crimes não podem ser tolerados. Porém, acredito que diferenças sociais atingem um ápice, a partir do qual podem sofrer mutação. Comecemos com a questão racial.
Sendo o Brasil uma nação de passado escravagista, é normal que o segmento negro receba proteção legal. Historicamente, essa grande parcela da população foi despedida do sistema produtivo brasileiro. Despedida sem dinheiro, formação e vínculos genealógicos com a América. Sofreu todo tipo de preconceito: racial, financeiro, religioso etc. Contudo, se a proteção ao negro virar protecionismo, atingiremos o vértice da pirâmide, a partir do qual o benefício atribuído a esse grupo implicará prejuízo de outros.
A questão da cota racial para ingresso em universidades públicas não está livre de críticas. E não está, primeiramente, porque o nosso povo não tem identidade racial. Salvo raras exceções familiares, somos um mix de culturas. Em nossas veias corre sangue de muitos povos. Europeus, asiáticos e africanos povoaram e povoam a terra milenar de milhões de índios. Enquanto algumas comunidades meridionais constituem ainda verdadeiras colônias de europeus-brasileiros, temos partes significativas de nosso território ocupadas por outros povos. Aqui no Pará, temos a nipônica Tomé-Açu, enquanto toda a Amazônia não passa de uma grande aldeia, com forte presença indígena na fisionomia e na cultura.
Quer ver uma coisa irritante? É a cor oficial da pele predominante em muitas regiões: parda. Já tentei de muitas formas saber exatamente a fórmula desse matiz, todavia, o máximo que consegui está relacionado à coprologia. É. Afora o governo, que insiste em classificar muita gente de “parda”, o registro mais próximo desse tom de pele encontra-se nas consultas médicas, quando nos perguntam a coloração das fezes. Ninguém merece essa comparação, porém, é assim que o governo consegue enxergar a cor da pele de um grande contingente populacional, principalmente na Amazônia, onde a gente não é branco nem preto.
À medida que o tempo passar, a questão das cotas raciais para afrodescendentes vai se tornar mais complicada no Brasil. E será assim porque o debate acima será aprofundado. E será porque o tempo, por si só, concorrerá para nivelar diferenças. Sim, pois hoje mesmo nem sempre é fácil concluir que a cor da pele é o grande vilão da injustiça social para alguns beneficiários das cotas. A título de exemplo, citemos as oportunidades iguais nos esportes, com a lembrança do lendário Pelé. E o que dizer de nosso atual presidente do STF? No futuro, a reserva de cotas poderá constituir medida injusta contra descendentes indígenas - quase toda a Amazônia -  e contra muitos outros brasileiros pardos, apenas pardos. Ponto de mutação das diferenças.
O que dizer da debatidíssima causa homoafetiva? Tenho a impressão que o mundo parece empurrar a heterossexualidade para o abismo. Todos vocês sabem o que penso acerca do respeito pelas pessoas, que não mudamos uma sociedade senão pela sua base. Agora, não vejo por que aptidões sexuais devem virar carnaval. Não vejo por que ministros do governo desfilam nesses blocos. Sexo não é coisa para avenida. Ninguém precisa sair pelas ruas gritando que é heterossexual. Ninguém precisa sair pelas ruas gritando que é homossexual. Sexo é vida privada. E, ainda que cometamos todos direitos à causa homoafetiva, somos todos filhos da heterossexualidade. Por isso, uma exagerada ênfase a questões sexuais de determinado grupo pode reverter em prejuízo para quem está fora dele. É preciso cuidado para que proteção a diferenças não sofram mutação nociva a toda a coletividade.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

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