Um procurador da República ganhou espaço na mídia nacional por uma singela frase despercebida há quase 30 anos. Resolveu admoestar as autoridades monetárias já tão ocupadas com a estabilidade da moeda e o cumprimento das metas fiscais. Para ele, a frase "Deus seja louvado" estampada nas cédulas do real é imprópria ao Estado brasileiro, que é laico e "não pode imprimir o dinheiro com uma frase religiosa". O Banco Central já se explicou, mas o dito fiscal da lei, convicto em sua independência funcional, vai agora bater às portas do ministro da Fazenda para exigir retratação. Se atendido, aguardemos a reimpressão de todas as cédulas sem a tal expressão deísta.
Num cenário de colapso da unificação monetária européia, o zeloso procurador está preocupado com o nome de Deus no dinheiro brazuca. Nossos tribunais aguardarão a bizantinice enquanto decidem outras milhões de causas.
A separação entre a religião e o Estado foi a reação à ingerência papal nos negócios das soberanias européias. Talvez pelo mimetismo que devotamos às referências saxônicas qualquer precedente naquelas terras se amoldaria por aqui. A busca, porém, desta vez será vã. A economia ianque há mais de dois séculos consagra o "Em Deus Confiamos" sob o símbolo maçônico do "olho que tudo vê". Passam os séculos e os ingleses enchem os pulmões para pedir que "Deus salve a Rainha". Ninguém por lá parece se importar com o nome de Deus.
O tal "politicamente correto" já não é tão imune a críticas. Ateus americanos se confessam "descrentes" na mudança de topônimos e na retirada de símbolos religiosos de prédios públicos. O procurador alega ofensa aos ateus e agnósticos brasileiros. Ora, se por lá vingasse a tese, o Texas e a Califórnia teriam alterado 90% dos nomes de suas cidades. Como identificar por outro topônimo a glamourosa capital do cinema Nuestra Señora de Los Angeles de Porciúncula? Aqui por estes trópicos, imagine-se outro nome para São Paulo, São Sebastião do Rio de Janeiro, Santa Catarina, Espírito Santo e Salvador. A pequena Exu, berço do centenário rei do baião, renegaria sua raiz iorubá amalgada ao nosso sincretismo. As bandeiras dos estados seriam reformuladas, pois cruzes, sóis e estrelas também são símbolos religiosos. O valente Pernambuco se revoltaria em ver sua flâmula reduzida a um arco-íris, símbolo de outras paixões que não cabe aqui esmiuçar.
Se a independência funcional do procurador me permitisse, recomendaria que ele externasse logo sua angústia à nossa Suprema Corte, que anda se ocupando de temas menores, como a ficha limpa e os poderes investigativos do CNJ. É fácil: indague-se ao STF se "a Constituição é inconstitucional", pois foi por obra de seus redatores que se colocou no preâmbulo a invocação da tal "proteção de Deus". Ficaria tudo resolvido: o Estado não seria apenas laico, mas também ateu. Se ateu, baixem-se leis proibindo a todos, crentes e incréus, as expressões metafísicas e medievas ("Vixe!", "Nossa!", "Valha-me, Deus!"). Ninguém teria desculpa para cabular a escola e o trabalho no Natal e na Páscoa. Criminalize-se o consumo de acarajé, abará, barrigas de freira e orelhas de abade!
Edifícios desabam e pessoas morrem na fila da urgência dos hospitais, mas o perigo maior vem do nome de Deus na cédula. É o iluminismo tardio desembarcando na Terra de Santa Cruz.
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MARCELO DOLZANY DA COSTA, paraense de Santarém, é juiz federal em Belo Horizonte, ex-diretor cultural da Ajufe e ex-juiz da ONU para os Crimes de Timor Leste (2001)
2 comentários:
Bobagem.
Com o devido respeito, bobagem.
Diria mais: falácia.
Sabe, aquela falácia que exagera no argumento pra sensibilizar a quem se tenta convencer.
O laicismo determina grosso modo que o Estado deve se abster de promover ideias religiosas, e, neste contexto, contrarreligiosas.
O laicismo não determina que se apague o passado, elimine-se a cultura ou os costumes.
"Deus seja louvado" é sim violação ao laicismo do Estado, posto que defende uma noção religiosa, ainda que ecumênica, frente ao ateísmo e agnosticismo e inclusive a religiões politeístas ou religiões ateias (pois é, há).
Mudar o nome de cidades, eliminar expressões, proibir comidas? Aí está a bobagem do argumento. Isto não é laicismo e nenhum defensor do laicismo propõe isto.
Falácia também a falsa dicotomia do "enquanto morrem pessoas alguém se preocupa com algo desimportante", porque retirar a ação não vai resolver os problemas das filas dos hospitais e tampouco impede que se cuide disto. E, afinal, o ilustre juiz, por que também não cuida de coisas mais importantes?
Está mais que na hora de acabar com a divinização do poder neste país que encontra,em grande parcela, sua consolidação nos símbolos religiosos. Grande parte dos problemas desse país advém dessa mentalidade religiosa que imagina que os merecedores de punições por crimes será em outro mundo.
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