domingo, 7 de setembro de 2008

Liberdade de fumar

TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR

O tabaco é um dos vilões da vida contemporânea. Mas não é proibida nem sua produção nem seu consumo. Em nenhuma parte do mundo se pune o "tráfico" de tabaco, muito menos o "porte" e/ou o "uso". Porém, o fumo pode incomodar os outros. Até onde vai a liberdade de quem fuma? E a de quem oferece espaço para o fumante? Existe uma liberdade de fumar em confronto com um direito de não aspirar a fumaça expelida pelo fumante?
Já no preâmbulo da Constituição, o constituinte fez inserir a liberdade como um dos valores supremos do Estado democrático de Direito, como um dos pilares "de uma sociedade fraterna". Em seguida, a liberdade é garantida no rol dos direitos fundamentais (Constituição Federal, artigo 5º, "caput").
Liberdade, assim, é direito que dá ao ser humano o espaço da cidadania, que não se vê absorvida pela sociabilidade inerente à sua condição. Afirma-se, assim, a singularidade do ser humano, igual entre iguais.
Portanto, a liberdade constitucionalmente assegurada implica a existência de uma permissão forte, que não resulta da mera ausência de proibição, mas que confere, ostensivamente, para cada indivíduo, a possibilidade de escolher seu próprio curso de ação, ainda que venha a sofrer conseqüências prejudiciais de seus atos.
Isso é particularmente relevante para a questão referente ao alcance das restrições impostas ao tabagismo.
A Constituição entende o tabaco como um produto cuja propaganda está sujeita a restrições por lei (artigo 220, parágrafo 4º). Se o produto é lícito, o consumo pode ser disciplinado em lei que lhe estabelecerá as condições de exercício, mas jamais a supressão do seu exercício a pretexto de discipliná-lo.
De um lado, estão os meios para a proteção do próprio fumante contra danos advindos do consumo, as imposições ao produtor do dever de esclarecer sobre a nocividade etc. De outro lado, os meios de proteção ao não-fumante, em termos de sua saúde, a fim de que não venha a aspirar a fumaça. É o direito de não ver sua saúde afetada pelo tabaco, por conta do direito da livre opção de não fumar.
Depreendem-se, assim, da proteção constitucional à liberdade e à saúde duas normas claras e gerais quanto ao destinatário, com relação à ação de fumar: uma permissão forte de fumar e uma permissão forte de não fumar.
A legislação federal proíbe, assim, o fumo quando o fumante estiver em recinto coletivo, público ou privado, salvo se houver nele área arejada destinada a esse fim: fumar. A ressalva, expressa, refere-se ao recinto coletivo, mas não a qualquer outro recinto, fora daquele, pois, se assim fosse, isso tornaria inútil a ressalva.
O problema está em como conciliar a compatibilização entre os direitos (do fumante e do não-fumante) e a competência para tomar a decisão de compatibilizar, até impondo a proibição total de fumar naqueles recintos coletivos privados.
Existem ambientes coletivos, privados, em que a convivência de fumantes e não-fumantes ocorre por força de uma necessidade externa que os obriga, de fato, a conviver.
É possível afirmar que, nesses casos, há sentido constitucional na proibição genérica de fumar, salvo em recintos destinados apenas aos fumantes, com o que se concilia o direito destes de fumar.
Deve-se, nesse ponto, evitar um equívoco. É preciso ficar claro que ser fumante ou não-fumante não diz respeito a uma condição da pessoa, mas à opção exercida por alguém acerca da sua exposição ou não aos riscos do tabaco. Por de trás da distinção entre saudável e não-saudável está a própria liberdade. Por exemplo, ninguém pode ser obrigado a receber uma transfusão de sangue se sua opção religiosa o proíbe.
Portanto, uma proibição absoluta de fumar para todo e qualquer recinto coletivo fere não só o espaço reservado à autonomia privada, como fere também o dever de conciliar os direitos do fumante e do não-fumante, quando em ambientes coletivos: o dever do Estado de harmonizar, tecnicamente, os respectivos exercícios. Liberdade, nesses termos, opõe-se à tutela estatal.
Como respondeu, certa vez, Hannah Arendt a amigos que a advertiam para que parasse de fumar em virtude de problemas com sua saúde: "Recuso-me a viver para minha saúde!".

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TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR , 67, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP. É autor, entre outras obras, de "Direito Constitucional".
Artigo publicado na edição desta quarta-feira da Folha de S.Paulo:

5 comentários:

Anônimo disse...

O espaço reservado à autonomia privada sempre cederá ao interesse público.
Quem quiser fumar em restaurantes, compre um para fumar sozinho.

Anônimo disse...

Bom dia, caro Paulo.

Sou fumante. Inveterada. Não sou das que fumam em elevadores e não gosto de incomodar as pessoas, mas gosto de ser respeitada como cidadã que fuma, que é, na verdade, um desvio leve perto de vícios graves e danosos para a coletividade: corrupção, desvio de dinheiro público, etc.

Quanto aos restaurantes, eles têm interesse em reservar áreas para não fumantes. E cabe ao fumante escolher não ir a restaurantes onde não pode fumar, que é o que faço nas raras vezes em que saio para restaurantes. Isso é bobagem, até.

Mas, a seguir o raciocínio do anônimo da 17:53, penso que sua recomendação, se generalizada, poderia resultar em outros conselhos: quem quiser falar alto nos restaurantes gritando no ouvido de quem está na mesa ao lado tentando comer e conversar em paz, quem quiser levar crianças mal educadas, quem comer de boca aberta, etc...que compre um para si.

Pra encerrar, meu pai repetia sempre: pior do que ex-fumante, só ex-comunista..rsrsrs..

Abração.

Poster disse...

Bia,
Essa do ex-fumante é ótima.
Nada como uma dessa para desopilar, numa segunda-feira pós-rebaixamento do Remo para a Quarta Divisão (putz!)
Abs.

Anônimo disse...

Ai..ai...ai...esqueci desse seu desvio...remista!!!

Tivesse eu lembrado e a gozação teria começado cedo...

Abração.

Poster disse...

Estou sintonizado nas rádios do Afeganistão, para não ouvir certas coisas no dia seguinte (rsssss).
Abs.