O Brasil perdeu, no dia 25 de junho último, uma das figuras mais representativas do cenário cultural deste país: dona Ruth Vilaça Correia Leite Cardoso. Vítima de arritmia grave decorrente de doença coronariana, levando-a a enfarte fulminante. Poder-se-ia simplesmente afirmar que naquele momento nos deixava uma das grandes inteligências deste País. Foi uma mulher incomum e nem sempre compreendida.
Dona Ruth Cardoso era casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso desde 1953, tinha 77anos, nasceu no município paulista de Araraquara, era antropóloga, já tinha uma longa carreira acadêmica dedicada a estudos do gênero e de aculturação. Deixa seu nome no registro das mulheres que pontuaram no cenário político-institucional brasileiro e dispensava o louvor embutido no tratamento dispensado às esposas dos mandatários. É a síntese de um caráter que a antropologia, área em que se doutorou, assim se define: segura em suas crenças, leais a seus afetos, fiéis à sua palavra, atentos a seu dever.
Não obstante, só ganhou projeção nacional no governo FHC por implantar o programa Comunidade Solidária, que, de 1995 a 2002, alfabetizou 3 milhões de jovens, capacitou mais de 100 mil para o mercado de trabalho e estimulou a organização de mulheres artesãs em cooperativas de produção. Ainda poderia ser dito que se encerrava a permanência no Brasil de uma mulher que detestava ser chamada de "primeira-dama".
Destacou-se por suas duas teses sobre aculturação dos japoneses no Brasil, que ganharam especial repercussão neste ano em razão do centenário da imigração japonesa. Defendeu sua dissertação de mestrado em 1970 com o "Papel das Associações Juvenis na Aculturação dos japoneses", e seu doutorado em 1972, com a tese "Estrutura Familiar e Mobilidade Social: estudo dos japoneses no Estado de São Paulo".
Com ela foi diferente. Dona Ruth Cardoso tinha a veleidade de preservar sua identidade como cidadã comum, mas, no que tange à Presidência da República, sem dúvida foi uma mulher excepcional. Exatamente pela visão que tinha do Brasil, sempre quis ver o lado que as pessoas não vêem na sociedade. Valores humanos e talento não cabem no espírito de muitos. Tinha uma produção científica reconhecida de além-fronteiras.
Dona Ruth chegou a provocar um contido escândalo quando, depois da eleição e antes da posse, cogitou a hipótese de não querer se mudar para a corte, queria ficar em São Paulo e levar uma vida normal. Os "súditos" sentiram-se rejeitados. Detestava o título de "primeira-dama", não dizia com todas as letras, mas achava a denominação antiquada e de mau gosto. Claro que tinha toda razão.
Não era de muita conversa, mas sempre certeira na análise dos problemas brasileiros, não abria mão das opiniões, ainda que polêmicas aliavam-se ao bom combate e, como não precisava, como o marido, fazer concessões inerentes à condição de governante, Ruth Cardoso foi se firmando no cenário nacional como um símbolo de dignidade e correção. A corte desistiu de enquadrar Ruth Cardoso nos parâmetros conhecidos e ela, enquanto fazia concessões na forma, conquistava respeito na exposição do conteúdo.
Os políticos aliados ao governo do marido logo perceberam o potencial eleitoral contido nessa boa figura, tentaram discretamente conquistá-la como parceira de palanque, mas a mulher do presidente, naquela firmeza típica dos seres de caráter imaculado não se deixava seduzir por bobagens.
O que mais chama a atenção na trajetória da autora de "A Aventura antropológica" é o fato de não ter precisado de holofotes midiáticos para iluminar seus caminhos. Sempre foi uma mulher de muita força, determinação e dignidade. Nem mesmo careceu do bastão do marido presidente para se apoiar, diferentemente do que tem ocorrido com a maioria das primeiras-damas de outros países.
Em sua cerimônia de despedida, reuniu o pesar dos partidos, das entidades, das sociedades, das instituições, algo inédito em se tratando de mulheres de presidentes. Mais inusitado ainda porque o presidente em questão está fora do poder. Quem se manifestou, portanto, o fez pela figura de Ruth Cardoso e tudo o que ela conseguiu representar. Essa é a herança que a professora Ruth deixa embalada na simplicidade. Como se fora uma música, e se a música é a voz de Deus, quando ficamos em silêncio nossa alma pode cantar.
Sergio Barra é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com
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