Os fatos amplamente noticiados pela Imprensa acerca de operação policial realizada pela Polícia Federal permitem refletir sobre questões jurídicas centrais da atuação estatal, dos seus limites e, sobretudo, do valor da Constituição.
No Estado de Direito, a Constituição representa o esteio das liberdades individuais sobre o qual repousa a missão fundamental de limite ao poder do Estado. Esta função de limite ganha expressivo relevo quando se está diante do exercício da persecução penal. Dentre o extenso rol de garantias constitucionais contra a ingerência estatal sobre as liberdades, destaca-se na nossa Carta Política a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.
As autoridades públicas não são livres na tarefa de coleta de provas que possam incriminar um suspeito. Vícios de legalidade na construção dessas provas, não raro, levam à absolvição de acusados, tendo em vista a vedação constitucional às provas ilícitas. Mesmo provas corretamente colhidas podem perder o seu valor de verdade quando possam ser consideradas "frutos da árvore envenenada" (teoria do fruits of the poisonous tree).
Os fatos narrados pela Imprensa demonstram que, no caso citado, houve um indiscriminado uso do instrumento da interceptação telefônica, captação de conversas de uma imensa gama de pessoas alheias ao fato central sob investigação, quase como um rede jogada ao mar na expectativa de que algum peixe graúdo fosse pescado, prática inaceitável pela Constituição. Até a conversa de um advogado com seu cliente, mantida sob o manto sagrado do sigilo profissional, veio para os jornais.
Parece claro até para um neófito em Direito o atabalhoamento que conduziu o procedimento de colheita de provas, realizado por uma autoridade policial que se considera inserida em uma grande luta cósmica do bem contra o mal, estando ela, claro, investida (talvez por autoridade divina) na figura de mocinho.
O juiz do caso, por outro lado, que deveria exercer o papel de árbitrio e guardião da Constituição, impedindo os excessos da autoridade policial, tal como um Pôncio Pilatos tupiniquim, se autodeclara um "servidor do povo", afirmando que apenas reflete nas suas decisões a vontade do povo. Bem, se Sua Excelência estiver correto na sua forma de ver o mundo e de interpretar a Constituição, o ideal seria expor os acusados em praça pública para que sejam julgados diretamente pelo próprio povo.
No Estado de Direito, o papel do magistrado é simplesmente o de julgar conforme a Constituição. Ponto final. Não lhe cabe interpretar a vontade do povo. Não lhe cabe combater nada. Esta tarefa incumbe exclusivamente à lei, a menos que abdiquemos de viver sob os princípios do regime democrático.
Ainda segundo o relato da Imprensa, juiz e delegado agiram à sorrelfa do comando hierárquico da polícia e do Ministro da Justiça, utilizando servidores do órgão responsável pela inteligência da República - o que lembra tempos tenebrosos vividos no Brasil. Chegou-se ao perpetrar o monitoramento do gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, o que constitui inaceitável desrespeito à autoridade do próprio Poder Judiciário.
Mais inacreditável ainda é que autoridades judiciárias se solidarizem com o juiz e o delegado do caso, como se estes tivessem sido desrespeitados, desconhecendo o princípio básico de que toda e qualquer decisão judicial de primeira instância pode ser revista por autoridade judiciária superior, assim como a decisão monocrática criticada por essas autoridades pode ser revista pelo colegiado da Suprema Corte. A revisibilidade das decisões judiciais é inerente à jurisdição e também constitui uma garantia de liberdade.
O que o episódio ensina é que, felizmente, para todos nós, cidadãos, no Estado de Direito os meios não justificam os fins. Os acusados, contra quem são dirigidas sérias imputações, têm uma grande possibilidade de, ao final do devido processo legal, alcançar a absolvição em face do notório desrespeito com direitos e garantias constitucionais levado a cabo na fase de investigação.
O clamor popular é o maior inimigo da liberdade e é precisamente contra os arroubos no exercício do poder e os sentimentos pessoais de vingança que a Constituição assume maior valor e se revela como o grande alicerce da vida em sociedade. Aqueles que hoje defendem o achincalhe dos acusados, amanhã podem ser vítimas do mesmo sentimento.
Helenilson Cunha Pontes é livre-docente e doutor pela USP e advogado tributarista
helenilson@cunhapontes.adv.br
No Estado de Direito, a Constituição representa o esteio das liberdades individuais sobre o qual repousa a missão fundamental de limite ao poder do Estado. Esta função de limite ganha expressivo relevo quando se está diante do exercício da persecução penal. Dentre o extenso rol de garantias constitucionais contra a ingerência estatal sobre as liberdades, destaca-se na nossa Carta Política a inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos.
As autoridades públicas não são livres na tarefa de coleta de provas que possam incriminar um suspeito. Vícios de legalidade na construção dessas provas, não raro, levam à absolvição de acusados, tendo em vista a vedação constitucional às provas ilícitas. Mesmo provas corretamente colhidas podem perder o seu valor de verdade quando possam ser consideradas "frutos da árvore envenenada" (teoria do fruits of the poisonous tree
Os fatos narrados pela Imprensa demonstram que, no caso citado, houve um indiscriminado uso do instrumento da interceptação telefônica, captação de conversas de uma imensa gama de pessoas alheias ao fato central sob investigação, quase como um rede jogada ao mar na expectativa de que algum peixe graúdo fosse pescado, prática inaceitável pela Constituição. Até a conversa de um advogado com seu cliente, mantida sob o manto sagrado do sigilo profissional, veio para os jornais.
Parece claro até para um neófito em Direito o atabalhoamento que conduziu o procedimento de colheita de provas, realizado por uma autoridade policial que se considera inserida em uma grande luta cósmica do bem contra o mal, estando ela, claro, investida (talvez por autoridade divina) na figura de mocinho.
O juiz do caso, por outro lado, que deveria exercer o papel de árbitrio e guardião da Constituição, impedindo os excessos da autoridade policial, tal como um Pôncio Pilatos tupiniquim, se autodeclara um "servidor do povo", afirmando que apenas reflete nas suas decisões a vontade do povo. Bem, se Sua Excelência estiver correto na sua forma de ver o mundo e de interpretar a Constituição, o ideal seria expor os acusados em praça pública para que sejam julgados diretamente pelo próprio povo.
No Estado de Direito, o papel do magistrado é simplesmente o de julgar conforme a Constituição. Ponto final. Não lhe cabe interpretar a vontade do povo. Não lhe cabe combater nada. Esta tarefa incumbe exclusivamente à lei, a menos que abdiquemos de viver sob os princípios do regime democrático.
Ainda segundo o relato da Imprensa, juiz e delegado agiram à sorrelfa do comando hierárquico da polícia e do Ministro da Justiça, utilizando servidores do órgão responsável pela inteligência da República - o que lembra tempos tenebrosos vividos no Brasil. Chegou-se ao perpetrar o monitoramento do gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal, o que constitui inaceitável desrespeito à autoridade do próprio Poder Judiciário.
Mais inacreditável ainda é que autoridades judiciárias se solidarizem com o juiz e o delegado do caso, como se estes tivessem sido desrespeitados, desconhecendo o princípio básico de que toda e qualquer decisão judicial de primeira instância pode ser revista por autoridade judiciária superior, assim como a decisão monocrática criticada por essas autoridades pode ser revista pelo colegiado da Suprema Corte. A revisibilidade das decisões judiciais é inerente à jurisdição e também constitui uma garantia de liberdade.
O que o episódio ensina é que, felizmente, para todos nós, cidadãos, no Estado de Direito os meios não justificam os fins. Os acusados, contra quem são dirigidas sérias imputações, têm uma grande possibilidade de, ao final do devido processo legal, alcançar a absolvição em face do notório desrespeito com direitos e garantias constitucionais levado a cabo na fase de investigação.
O clamor popular é o maior inimigo da liberdade e é precisamente contra os arroubos no exercício do poder e os sentimentos pessoais de vingança que a Constituição assume maior valor e se revela como o grande alicerce da vida em sociedade. Aqueles que hoje defendem o achincalhe dos acusados, amanhã podem ser vítimas do mesmo sentimento.
Helenilson Cunha Pontes é livre-docente e doutor pela USP e advogado tributarista
helenilson@cunhapontes.adv.br
Um comentário:
Caríssimo Paulo,
Muito bom o artigo do dr. Helenilson.
Até que enfim alguém lembrou que o compromisso do juiz não é com a vontade popular.
E ele está certo ao dizer que o clamor popular é o maior inimigo da liberdade, porque o sentimento geral de vingança não nos faz melhor daquele que cometeu o delito.
Parabéns, dr. Helenilson
Roberto Duarte da Paixão Junior
Postar um comentário