sexta-feira, 14 de junho de 2013

Não, senhores, isso não é uma revolução. É uma revolta.


Olhem só, meus caros.
Conta-se uma história que pode ser inacreditável, mas é confirmada por historiadores e escritores dos mais acreditados, entre eles Stefan Zweig, que escreveu o magistral, o fenomenal Maria Antonieta - Retrato de uma mulher comum, que o poster terminou de ler não faz nem dois meses.
A história é singela, mas elucidativa.
Corriam aqueles dias tumultuosos, turbulentos, conturbados.
Corriam aqueles inauditos dias de 1789.
Luís XVI, Maria Antonieta e uma corte das mil e uma noites enclausurados em Versalhes, a uns 40 minutos de Paris.
Eram dias de julho.
A madrugada avançava.
O rei dormia.
Vindo de Paris, o duque de Liancourt quer acordar Sua Majestade, que enfim é despertado para receber as últimas, as mais quentes, as mais novas.
- A Bastilha caiu! O governador foi assassinado! Sua cabeça foi conduzida pela cidade inteira sobre uma lança! - informa o duque, ainda ofegante depois da cavalgada a jato que fizera de Paris a Versalhes.
- Mas isso é uma revolta - tartamudeia o rei, assustado.
- Não, Sire, isso é uma revolução - corrige o duque.
2013. Mais de 220 anos depois.
Correm estes dias em São Paulo, a maior cidade do país.
Há quatro dias, manifestantes que protestam contra o reajuste das tarifas de transporte coletivo se enfrentam com a polícia.
Ontem, 20 mil foram às ruas. Houve feridos. Houve pânico. Feridos. Correria. Mais de 190 pessoas detidas.
Ouçam o prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT) e o governador paulista, Geraldo Alckmin (PSDB).
- São manifestações políticas violentas - reagem eles, acordados - como o fora Luís XVI -, despertos e em alerta.
- Não, senhores, isso é uma revolta. Uma revolta - alguém deveria corrigi-los, como o duque de Liancourt corrigiu seu interlocutor, o rei, naqueles dias inauditos que marcavam o início de uma revolução.
Sim, é uma revolta.
Nada que se compare, nem de longe, nem palidamente, à Revolução Francesa, que viria a ser um marco na história da humanidade.
Mas a alienação dos governantes, esta sim, é atemporal, esta guarda proximidade, esta não perde o sentido, apesar de separada - mas não dissipada - nas brumas irreversíveis do tempo.
Repórteres, sempre seduzidos por vozes oficiais, correm atrás do prefeito e do governador para perguntar-lhes o que acham das manifestações.
Os coleguinhas deveriam ir aos mesmos endereços, o Palácio da Cidade e o Palácio dos Bandeirantes, mas para falar com o motorista, os cozinheiros, os porteiros, os serviçais de Haddad e Alckmin.
Deveriam ouvi-los em off.
Consultá-los sobre o quanto ganham.
Perguntar-lhes quanto reservam de seus salários para o transporte.
Quanto gastam para ir e vir do trabalho.
Questioná-los sobre as condições do transporte coletivo que utilizam.
Saber até que ponto a inflação corrói seus ganhos.
Era esse segmento que os coleguinhas deveriam ouvir.
Se o fizessem, alguns coleguinhas, que além de serem jornalistas incluem-se na categoria mais especial de formadores de opinião - seja lá o que isso venha a significar -, talvez viessem a sintonizar com maior precisão os juízos e os conceitos que os levam a definir o que é mesmo violência.
E então, o que é mesmo a violência?
Depredar o patrimônio público é violência?
É. Violência condenável.
E os serviços públicos de que usufruímos, que nos esfolam, nos assaltam, nos estupram, nos envilecem e humilham?
Quando pagamos em dia operadoras de telefonia celular, como essas porcarias chamadas TIM e Oi, que nos deixam sem serviços, isso não é violência? Não é um estupro aos nossos direitos? Não é uma afronta aos nossos bolsos? Não é um escárnio, um deboche a todos nós, que nos vemos obrigados a ficar horas e horas pendurados num telefone para falar com atendentes que nada resolvem e igualmente debocham da gente?
E concessionárias de energia elétrica como esta Celpa, não nos violentam quando nos cobram em dia, mas nos fornecem um péssimo serviço, a ponto de forçar alguns de seus usuários a atravessar um carro em frente ao portão da empresa, como já ocorreu aqui em Belém?
E os usuários dos serviços de ônibus?
A secretária aqui da redação mora em Ananindeua. Às vezes, gasta duas horas para ir de Nazaré até sua residência.
Viaja em ônibus imundos, malcheirosos, com pneus carecas, e ainda por cima sujeita às abordagens de bandidos sempre à solta e prontos para dar o bote.
Vamos parar com hipocrisia, meus caros.
Violência chama violência, não é?
O Poder Público que autoriza o ajuste de tarifas de ônibus, mas tenta amenizar essa violência justificando que o tal aumento ficou abaixo da inflação, está atraindo a violência.
Um governante que comete a violência de fazer juízos apressados, atribuindo a inspirações políticas um movimento de revolta, de insatisfação que já está levando 20 mil pessoas às ruas da maior cidade do país, esse governante precisa, literalmente, cair na real.
Caindo na real, talvez consiga até distinguir situações como a exposta no vídeo acima, que está circulando aí pela internet.
Vejam vocês mesmos.
Confiram vocês mesmos.
Constatem com seus próprios olhos e ouvidos.
Vejam quem começa a violência.
E julguem com mais isenção a que violência se referem alguns coleguinhas, alguns formadores de opinião e governantes enclausurados, alienados, encastelados em suas convicções desprovidas de elementos mais objetivos, daí ser arvorarem a dizer que revoltas e insatisfações generalizadas, como as que se esparramam pelas ruas de São Paulo, não passam de arruaças e badernas de desocupados.
Acham que essa revolta não passaria, vejam só, de estouvamentos produzidos pelas paixões que a juvenilidade desperta.
Governantes assim não se convenceriam da realidade nem mesmo se deparassem, à sua frente, com um duque de Liancourt redivivo, e a dizer-lhes:
- Não, senhores, isso não é uma revolução. Mas é uma revolta. Cuidem-se, porque é uma revolta.

3 comentários:

Anônimo disse...

Texto perfeito e pertinente, para béns seu Espaço.

Não tendo nenhuma intenção de fazer adendos ao seu texto correto e acabado, diria que estamos de saco cheio de tentarem nos fazer crer que vivemos num paraíso.
Paraíso onde saúde, segurança, educação e serviços públicos são "o que há" de bom; que os impostos que pagamos retornam em benesses pra todos, e por aí vai.
Mas a realidade todos nós conhecemos, é outra.
Tentam mascarar com miçangas mas não convencem; a revolta está silenciosamente em andamento.

Anônimo disse...

Uma bela postagem que atravessa os anais do tempo, os anais da história, e cai no tempo presente quando somos espoliados diariamente pelos desserviços governamentais e privados. Só a luta não deve ser banida de nossas vidas, ela é a esperança de que a sociedade organizada pode ir muito mais.

Anônimo disse...

Caro Poster, eu digo que Belém reúne muitos ingredientes para revolta semelhante.

Vamos pegar apenas um exemplo: a ausência de infraestrutura para o pedestre circular pela Av. Augusto Montenegro, a área que mais cresce na cidade. Há muito venho criticando a situação dramática de quem circula a pé por lá.

As calçadas são o melhor retrato da situação. Geralmente são desniveladas e quase sempre estão tomadas por mato, lixo, lama, restos de construção, buracos ou ocupadas por comerciantes. Passarelas são apenas três em toda a extensão da via, transformando o simples hábito de atravessar a pista em uma tentativa de suicídio. Faixas de pedestres em pontos estratégicos também são raridade. Inauguraram o Parque Shopping e - que ironia! - apesar do nome "Parque" é quase impossível chegar a pé e atravessar em frente ao empreendimento. Risco de vida!

Se já é complicado para a maioria, imagine então para os idosos e portadores de necessidades especiais. Já imaginaram? É como se o "direito de ir e vir" fosse assegurado apenas às pessoas motorizadas - seja de carro, moto, van ou outro veículo. O problema não é perceptível para quem passa de carro pela Augusto Montenegro, para "sentir o drama" é necessário andar a pé por lá.

Dia desses, presenciei o que poderia ter sido uma tragédia. Em um trecho próximo ao Conjunto Maguari, as calçadas sem condições de uso quase favorecem um atropelamento fatal. Seriam umas 10 vítimas - que transitavam pelo meio-fio da avenida não porque queriam, mas porque não havia outro lugar para elas passarem.

Não é possível que essa via continue sendo a Galinha dos Ovos de Ouro para o mercado imobiliário e o Patinho Feio para o poder público. Como essa avenida estará nos 400 anos de Belém? Quantas pessoas morrerão atropeladas até que o BRT esteja pronto, sabe-se lá quando?