segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Circunstâncias bem diferentes


A história cria aproximações estranhas. Mas algumas não começaram bem. No Brasil, muito antes da República, religião e política se confundiam. No Império, os padres eram funcionários públicos, as religiões diferentes da católica podiam ser praticadas, mas “sem forma externa de culto” e, finalmente, bispos eram nomeados e encíclicas eram seguidas somente se o imperador lhes desse o acordo. Isso causava estranheza, havia necessidade de mudança.
Outras mudanças, algumas carregadas de incertezas. Um dos primeiros atos do regime republicano no País foi separar a Igreja do Estado. Desde a República, nenhuma Igreja pode ser oficial, ao mesmo tempo em que se garante ilimitada liberdade de culto a todas.
Isso não foi tarefa tão fácil de realizar. Os católicos contaram com muito apoio oficial. Lembro da minha infância, as aulas de Religião – tanto na escola pública quanto na particular – eram praticamente só da igreja católica. Ela orientava as pessoas sobre os filmes aos quais podiam assistir e até recomendavam o voto dos eleitores, apesar de nunca ter atingido a influência de sua congênere italiana – talvez porque a “ameaça comunista” aqui, nunca tenha sido grande. Alguns padres recomendavam que os fiéis destruíssem bíblias protestantes, caso as tivessem, e não lessem Monteiro Lobato.
Nos últimos 50 anos, porém, enquanto aumentava o numero dos católicos não praticantes, crescia tremendamente o de cristãos evangélicos, de adeptos de outras religiões e de agnósticos ou ateus. E a igreja católica mudou muito.
Isso quer dizer que se separou a Igreja do Estado, a Religião da política? Não. Quando, na campanha presidencial, a questão do aborto entrou em cena, seus principais porta-vozes foram líderes religiosos. Um assunto que deve ser debatido com calma e tranquilidade foi atirado às paixões e preconceitos. Os candidatos tiveram que dar-lhe uma importância excessiva.
Para o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), os homens não são naturalmente políticos, como queria Aristóteles. Ao contrário, os homens devem criar modos de viver em sociedade. A novidade de Hobbes foi a ideia de representação política. Ela é que permite a existência da soberania (que pode ser concedida a uma pessoa ou a uma assembleia, um conselho) a ter poder supremo. Por quê? Porque todos os homens transferem para ele seus poderes individuais.
É claro que não se trata de cair num relativismo moral completo. Acredito que todas as pessoas decentes condenem o assassinato, o estupro, a violência ilegítima. Mas, em sociedade, nem sempre os acordos a que chegamos sobre o que fazer estão baseados nos mesmos princípios. Com frequência, concordamos sobre ações práticas ainda que os princípios de uns e de outros sejam diferentes. É só assim que a sociedade democrática pode funcionar: pessoas com crenças religiosas e convicções políticas diferentes, todas elas legítimas, mas que concordam sobre um mínimo de regras que valham para todos.
Por isso, os líderes religiosos não devem dar ordens a seus fiéis. Podem orientá-los. Podem dizer que levem em conta a justiça social, a moral dos candidatos, até mesmo sua posição sobre o aborto. Tudo isso é legítimo. Mas não devem ordenar que sigam uma de suas orientações como sendo a única. O mundo é complexo demais para ser medido com um único metro. As pessoas são complexas – e muito ricas – para que sua vida e suas opiniões se reduzam a uma regra apenas.

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SERGIO BARRA é médico e professor
E-mail: sergiobarra9@gmail.com

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