terça-feira, 5 de maio de 2015

O único remista sentenciado


ISMAEL MORAES

Atualmente conheço um único sábio vivo contador daquelas histórias saborosas que deixam lições de vida, que é o desembargador aposentado Manoel de Christo Alves Filho, figura tão carismática que quando presidia o Tribunal de Justiça do Pará conseguia resolver salomonicamente questões espinhosas, como se fosse um avô de todos.
Hoje tive o prazer de encontrá-lo, junto com o também agradável desembargador aposentado Benedito de Miranda Alvarenga, na antessala da Presidência do TJ. Ali, narrou-me mais um causo inédito, apesar de já ter tido o privilégio de ser-lhe ouvinte de mais de uma dezena.
Todos sabiam que o desembargador Calistrato Alves de Matos possuía duas grandes obsessões: o Clube do Remo e a Maçonaria. E eis que a disputa encarniçada entre o Remo e o Paysandu pelo título de campeão paraense saiu do campo e foi dar com os costados no Judiciário.
Em 1º grau, o juiz proferira decisão que acabou sendo levada à Corte por meio de um mandado de segurança. Distribuído, coube a relatoria do feito ao sisudo desembargador Ary da Mota Silveira, que no dia do julgamento proferiu o voto favorável ao time do Baenão. O desembargador Calistrato manteve-se calado em meio ao acalorado debate causado pelo tema apaixonante e, quando todos esperavam a sua declaração de suspeição, pediu vista dos autos.
Estupefato, o velho e experiente advogado João Marques, patrono do Paysandu, naquele momento só pôde protestar por meio de muxoxos inofensivos, porque então já não poderia ocupar a Tribuna.
– Como o Calistrato poderia, além de votar, ainda por cima pedir vista dos autos? Não havia em Belém um remista mais chauvinista que ele! - protestou, em meio ao plenário lotado.
Mal terminara a sessão, correu ao escritório por entre o abafado causado por uma lambada de chuva que ainda evaporava sob um insistente sol nos paralelepípedos da Cidade Velha. Em ali estando, formulou uma arguição de suspeição à guisa de catilinária capaz de fazer inveja a qualquer Cícero, discorrendo sobre a paixão doentia daquele desembargador pelo Clube do Remo. Recorreu a um retratista profissional, que levou uma Polaroid claudicante à frente da casa do magistrado, registrando de modo inelutável não apenas a suspeição, mas a total incapacidade emocional do julgador: havia um escudo do Clube do Remo, esculpido e pintado com o azul mais marcante na fachada da habitação.
- Peguei o canastrão!, confabulava consigo mesmo o advogado.
Voltando à pauta na sessão seguinte – porque todos ansiavam pelo término da temporada! -, o arguido rejeitou a suspeição alegando que não fora ele quem mandara gravar ali em sua casa o escudo com as letras CR naquele azul ofuscante. Trouxera de Soure, sua terra natal, um mestre de obras fanático pelo Redenção Futebol Clube, um time local cujas iniciais e escudo imitavam os do Clube do Remo. E eis que o operário, encegueirado na sua devoção àquele desconhecido time de várzea, confiara na amizade avoenga entre suas famílias para acreditar-se impune em deixar aquele registro numa casa da capital. Portanto, aquela fotografia nada provava.
Então, cabendo ao resto do colegiado decidir, foi escolhido relator da suspeição justamente o nosso narrador, desembargador Christo Alves, que teve que sucumbir diante daquela exceção tão verossímil, pois de fato a figura heráldica e a cor da agremiação esportiva da terra natal do arguido eram idênticas às do Clube do Remo. Portanto, inexistia prova definitiva capaz de afastar o julgador.
- A Bíblia diz que não podemos fazer injustiças contra órfãos e viúvas... E neste caso cada um votará de acordo com a sua paixão! – confidenciou Christo Alves.
E foi assim, superado o incidente, que o desembargador Calistrato Matos pôde votar e, claro, a favor do Clube do Remo, com a maioria do Tribunal seguindo o desembargador Ary da Mota Silveira, não por causa da autoridade moral que lhe era marcante ou da juridicidade do seu voto.

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ISMAEL MORAES é advogado
A essência da história foi ouvida ontem, 4 de maio, pelo autor, descontada a licença poética

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