Por Luciano Martins Costa, no Observatório da Imprensa
É parte das crenças nas redações que o jornalista, por viver imerso nos fatos e em contato quase permanente com os dramas da sociedade, acaba por desenvolver uma espécie de capa impermeável emocional. Essa seria uma qualidade exigida, por exemplo, para os repórteres de televisão e rádio, os âncoras dos telejornais e os entrevistadores em geral.
Apresentador do Jornal Nacional, da Rede Globo,William Bonner costuma ser lembrado por ter sido capaz de noticiar a execução de seu colega Arcanjo Lopes do Nascimento, o Tim Lopes, em 2002, com o rosto praticamente impassível, sem demonstrar seus sentimentos. Mas também é citado por não ter podido conter as lágrimas ao anunciar outra morte, no ano seguinte, a do seu patrão Roberto Marinho.
Essa característica atribuída a jornalistas tem sido também a origem de muitos equívocos na interpretação dos sentimentos alheios. Eventualmente, correm até apostas nas redações sobre quanto tempo determinado acontecimento vai levar até começar a produzir anedotas entre jornalistas.
Um jornal importante, como o gaúcho Zero Hora, pode passar de manifestações explícitas de luto, como a colocação de faixa pretas em suas páginas, até o extremo oposto, o de admitir conteúdo de puro escárnio às vítimas. Correm na internet manifestações de protesto contra a charge publicada na terça-feira (29/1), pelo principal jornal da região Sul do país, sob o título “Uma nova vida” (ver aqui).
A obra, assinada pelo veterano chargista Marco Aurélio, retrata uma longa fila de estudantes mortos, postados diante de um prédio identificado como “USP – Universidade de São Pedro”. Da porta, o próprio São Pedro recebe e direciona os jovens conforme a especialidade – arquitetos, sala 5 com Niemeyer; gente da pedagogia, com Gilberto Freyre; medicina, sala 7 com Zerbini” – e assim por diante. É uma referência direta aos mortos na boate Kiss, de Santa Maria (RS), que o mais reles pasquim de quinta categoria teria pejo de exibir.
Após as primeiras críticas de leitores, o desenho desapareceu da versão online do jornal e o blog “Os diaristas”, que costumava publicar os trabalhos de chargistas e caricaturistas do grupo Zero Hora, foi tirado do ar. Mas fica a pergunta: o que é que o jornal gaúcho pretendia ao publicar esse monumento ao mau gosto?
O jornalista, um fingidor
Na verdade, os jornalistas, como o inverso do poema, apenas fingem não sentir a dor que deveras sentem. Por essa razão, entre outras, espera-se deles que dominem o vernáculo e as demais linguagens da comunicação, de modo a poderem se aproximar dos fatos com alguma objetividade, sem pieguice mas também sem frieza.
Em episódios de risco de má interpretação, a medida mais salutar é eliminar as fontes de possíveis equívocos. No caso da tragédia de Santa Maria, o mais correto seria dispensar os chargistas de terem que caminhar na corda bamba. Mesmo porque uma seção de humor é a última coisa que o leitor gostaria de ver num jornal em uma ocasião como essa.
Na quinta-feira (31/1), os jornais de circulação nacional começam a deixar para trás os relatos emocionados de sobreviventes e parentes das vítimas fatais e investem na apuração das causas da tragédia. Além disso, instigam as autoridades a tomar uma posição mais clara quanto à necessidade da prevenção de riscos nas casas noturnas em outras cidades.
A Folha de S.Paulo volta a tratar do assunto em manchete, noticiando que a prefeitura da capital paulista promete fazer uma avaliação das boates da cidade em noventa dias. O Estado de S.Paulo informa, na primeira página, que o dono da boate Kiss instalou a espuma de plástico que gerou a fumaça tóxica sem consultar os bombeiros nem a prefeitura de Santa Maria; e também registra as medidas preventivas tomadas em São Paulo. O Globo alerta que há no Rio de Janeiro 49 espaços culturais sem alvará e também anuncia um mutirão de vistorias.
Os familiares das vítimas finalmente podem se retirar para o luto privado, com menos risco de virem a ser convocados a expor suas penas diante das câmeras. O foco agora é a caça aos responsáveis, e, claramente, a imprensa escolheu entre os dois proprietários da casa noturna de Santa Maria aquele que vai levar a carga mais pesada.
Ao mesmo tempo, as luzes começam a se afastar do prefeito e do comandante local do Corpo de Bombeiros. Mas, até a quinta-feira, ninguém havia divulgado o nome que assina o laudo que liberou aquela ratoeira.
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