Por Sylvia Debossan Moretzsohn, no Observatório da Imprensa
“A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente.”
É assim que a escritora americana Joan Didion abre O ano do pensamento mágico, livro no qual relata e reflete sobre suas emoções diante da morte súbita do marido, numa véspera de Ano Novo, logo depois de chegarem em casa, de volta de uma visita à filha única, recém-internada, e que morreria também algum tempo depois. Quando o livro foi lançado no Brasil, em 2006, a escritora deu entrevista ao Globo em que reiterava o seu aprendizado com aquela dupla perda: “Eu perdi a ideia de que é possível controlar as coisas”.
Nas horas imediatamente seguintes ao incêndio que vitimou centenas de jovens numa boate em Santa Maria (RS), choveram explicações para o que poderia ter evitado a tragédia: se a banda não tivesse utilizado efeitos pirotécnicos, se a casa tivesse revestimento acústico não inflamável, se os extintores funcionassem, se houvesse saídas de emergência, se os seguranças tivessem liberado logo a porta, se houvesse ali um bombeiro civil, se houvesse fiscalização adequada... sem contar outros conselhos tolos supostamente resultantes da lição daquela madrugada: os clientes devem verificar as condições de segurança dos locais que frequentam, como se isto fosse possível, e como se esta não fosse uma óbvia responsabilidade do Estado.
Do lado dos sobreviventes, a culpa típica de quem não entende como nem por que escapou: como conseguiram sair e tantos outros ficaram?, como não voltaram para salvar amigos, parentes, namorados?, o que poderiam – deveriam? – ter feito para livrá-los da morte? Do lado dos pais, a culpa de sempre: pois os filhos sempre estariam vivos, felizes e saudáveis caso ouvissem seus conselhos.
Se a lista de fatores que concorreram para a tragédia é correta e contribui para a apuração das responsabilidades – embora, a rigor, não haja fiscalização que impeça um comportamento inconsequente capaz de detonar uma catástrofe num ambiente fechado e lotado –, se evidentemente o que ocorreu não foi uma fatalidade – como pretendem os advogados dos donos da boate –, ainda assim a conclusão de Joan Didion poderia servir ao mesmo tempo de consolo e esclarecimento a quem viu a vida mudar num instante, assim de repente, imprevisivelmente: não é possível controlar as coisas.
A emoção mobilizadora
Mas para pensar assim é preciso já ter sofrido o desespero e a dor lancinante da perda, e ter sobrevivido a ela. Não só por isso, mas também por isso, a cobertura jornalística – especialmente a televisiva – de tragédias como essa não pode abrir mão de expor o sofrimento, e a questão sempre estará na definição do limite tênue entre o que é lícito ou não exibir: entre o que a dor pode informar e revelar e a sua exploração sensacionalista e desvirtuadora da capacidade de reflexão e mobilização. Entre o que nos comove e convoca a agir e o que simplesmente nos leva a chorar e a manifestar condolências.
Recorro aqui às indagações do repórter português Carlos Fino, que se tornou conhecido dos brasileiros quando trabalhava na RTP – Rádio e Televisão de Portugal – e cobriu a invasão americana ao Iraque, em 2003:
“Como é que se transmite o horror da guerra? Esta é uma de nossas contradições, não é? Brecht dizia:‘homem, olha bem nos olhos do outro homem e verás nele um irmão. As contradições que te consomem não são boas nem más, são a tua própria condição’. E assim vivemos, quer dizer, como é que damos o horror da guerra sem imediatamente sermos acusados de estarmos a comungar da sociedade do espetáculo e a explorar o sentimento alheio? Eu vou pôr a mão que eu vi decepada no mercado de Bagdá quando os americanos provocaram mais uma vítima colateral? Ponho a mão pra provocar desgosto e repulsa ou escondo essa imagem, não a edito, para não ferir os sentimentos das pessoas? Como é que se transmite isso? Eu não sei dar uma resposta precisa.”
Do mesmo jeito que não se pode cobrir uma guerra de maneira estritamente racional, apresentando-a na lógica do jogo de poder – “a continuação da política por outros meios”, na famosa definição de Clausewitz –, excluindo o sofrimento humano que esse jogo provoca, não é possível pensar na cobertura de uma tragédia como a de Santa Maria sem a exposição do drama vivido pelas pessoas.
Não se trata, é claro, da exibição da desgraça e da formulação de perguntas que provocam a voz embargada e o choro para o previsível close, ou do recurso de supressão do som ao fim dos telejornais que, de tão utilizado, já se tornou clichê – ainda mais se acompanhado da sucessão das fotos daqueles jovens sorridentes que já não existem mais. Trata-se de coisas como o depoimento da mãe de dois rapazes – um morto, outro em estado gravíssimo no hospital – ao programa Mais Você, de Ana Maria Braga,especialmenterevelador por pelo menos dois motivos: porque fala de uma mulher simples que gostava da apresentadora, colecionava suas receitas e pensava em um dia estar mesmo a conversar com ela, mas para falar de suas habilidades culinárias, e nunca naquela situação tão triste; e porque essa mulher simples usa esse espaço para esse grito de dor e revolta contra o absurdo que se abateu sobre ela e tantos outros, apresentando-se como uma porta-voz do sofrimento e do protesto coletivo.
Talvez esta seja uma forma de se explorar a única emoção útil, a da revolta, de acordo com o comentário de Luis Fernando Verissimo que encabeçava a página 3 do caderno “Metrópole” do Estado de S.Paulo de segunda-feira (28/1):
“Depois do choque, da incredulidade, da empatia emocionada com os que foram diretamente tocados pelas mais de 200 mortes da tragédia de Santa Maria, vem a revolta. Que no fim é a única emoção útil, a que tem – ou deveria ter – consequência. As outras são manifestações humanas de solidariedade. A revolta é dirigida a todas as causas evitáveis do horror. À imprudência, às falhas na fiscalização, à ganância. A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam. E pede responsabilização clara e exemplar dos culpados. Infelizmente, uma coisa que pouco se vê no Brasil.”
A charge fora de hora
Enquanto isso, no Globo o cartunista Chico Caruso publicava a sua charge de capa: a boate reduzida ao seu sentido etimológico original de “caixa”, uma arapuca gradeada como uma prisão lotada de pessoas desesperadas tentando inutilmente fugir dali, enquanto o fogo se alastra e a fumaça negra atravessa o teto. E a presidente Dilma, de blazer vermelho, levando as mãos à cabeça e gritando: “Santa Maria!”
Como de costume, o jornalista Ricardo Noblat reproduziu a charge no mesmo dia (28/1), em seu blog. No início da noite já colecionava mais de 200 comentários, quase todos furiosos, classificando-a de “lamentável”, “inoportuna”, “nojenta”, “lixo”, “imbecil”, “insensata”, “infeliz”, “aberração”, “oportunista”, “ridícula”, “desarrazoada”, “desproporcional”, obra de um “perfeito idiota”, e condenando o cartunista – e por extensão o colunista-blogueiro, pela divulgação – de fazer pouco da desgraça que comovia o país e de utilizar um momento de consternação para, mais uma vez, bater em Dilma e no PT.
Em resposta, Noblat repetiu algumas vezes este comentário:
“Os que criticam a charge do Chico Caruso perderam o bom senso, a se levar em conta a violência com que escrevem. O que a charge tem de chocante, de desrespeitosa com quem quer que seja? Dilma pôr as mãos na cabeça e dizer ‘Santa Maria’? Isso é um absurdo? Só enxerga nisso uma crítica à presidenta os fanáticos políticos de plantão. Aqueles que politizam tudo. Os que alugaram sua pena e sua mente a interesses partidários. Dilma não faz política quando grita ‘Virgem Maria’. Nem a charge sugere isso. Dilma revela seu desespero. Sua inconformidade. Que é nossa também. Ela não tem culpa alguma pelo que aconteceu. Foi solidária com todos os que sofrem. Esteve em Santa Maria. Sinceramente se comoveu com o que viu. O que tem mais na charge? A boate transformada numa prisão? As janelas gradeadas? As mãos crispadas dos que ali ficaram retidos clamando por ajuda? Mas não foi mesmo numa prisão em que a boate se transformou? Numa armadilha? Numa ratoeira? Perdão, mas vcs não sacaram nada, nadinha.”
Não há dúvida de que qualquer discurso comporta mais de uma interpretação, mas exatamente por isso o argumento de Noblat não se sustenta: porque a desqualificação de seus interlocutores ao final – “vcs não sacaram nada, nadinha” – supõe um sentido único e, a rigor, muito improvável, dada a sistemática postura do jornal contra o governo petista. E, também, por causa da identificação de toda contestação aos “fanáticos de plantão”, que “politizam tudo”.
Um chargista ocupa um espaço privilegiado para a crítica social e política bem – ou mal – humorada, para uma síntese que em geral nos faz rir de nós mesmos. Os comentadores indignados do blog do Noblat podem estar completamente enganados, mas é impossível desconsiderar os protestos contra a falta de sensibilidade nesse momento particularmente dramático da vida nacional.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)]
Um comentário:
Quando essas desgraças não ocorrem com os nossos amigos e filhos(principalmente), dá até pra discutir. Caso contrário não conseguimos imaginar a dor dos familiares.
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