Há tempos que o blog queria contar essa história.
Uma história verdadeira.
Verdadeiríssima.
Mas gostaria de vê-la contada com o timbre, com o sinete de Paulo Silber da Gama Alves, o Imperador de Marapanim, a Borboletinha do Mar (rsss).
O blog insistiu, insistiu e nada.
Até que conseguiu.
Vocês precisam ler.
É deliciosa.
E não poderia ser diferente.
Porque Silber é um craque.
É um dos melhores textos do jornalismo do Pará.
Sua competência já foi testada muitas vezes, aqui e alhures (toma-te!), aqui e acolá.
Foi testada e aprovada com louvor.
Certamente o será mais uma vez, agora que ele enfrenta uma nova experiência, a de exercer a função de Diretor de Jornalismo da Secretaria de Comunicação do governo do Estado.
Leiam o cara.
Deliciem-se com ele.
E comecem a conhecer melhor o Saroquinha, que terá sua saga revelada em outra e oportuna postagem.
Sob a grife de Silber, é claro.
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A saga de Maciste, a sina de Saroquinha e o incrível poder do Beijo-de-Moça
Eu não tinha mais do que 12 anos e menos de onze pelos no peito, se tanto, quando Maciste, o homem mais forte do mundo, cometeu sua última tolice:
- Esta cidade não tem homem pra bater em mim!
Ele rosnou com propriedade, no centro do picadeiro daquele circo sui generis com nome de palhaço (Arlequim) em cujo elenco havia um pedaço de palhaço com nome de circo: Dom Vitorio – batismo pouco indicado a anões.
Maciste gostava da cidade de cuja masculinidade duvidou. Era o terceiro dia da temporada e ele, um tanto pela figura caricata, mais ainda pela falta de alternativas, era a principal atração do circo.
De dia, adorava flanar pelo quadrilátero de ruas estreitas da parte mais idosa de Marapanim, onde a memória dos colonizadores ainda tem vaga lembrança. Punha-se sob um chapéu de palha com abas mais largas do que o normal, que lhe fazia na testa farta uma sombra em V, calças Lee surradas e ostensivamente justas na virilha, camisa de time, qualquer que fosse, do Bom intento ao Peñarol, tamancos esmaecidos com lâminas de alumínio no salto que de longe anunciavam sua chegada.
Maciste gostava de acreditar que impunha respeito. A cidade adorava fazê-lo pensar assim.
Na cumplicidade do escárnio popular com a própria soberba, Maciste fazia lá o seu sucesso como estrela de primeira grandeza do Grand Circo Arlequim, sobrepujando as dançarinas esquálidas cuja apresentação era uma pobre sequência de pliês; o mágigo decrépito de um truque só, o do barbante; os quatro malabaristas idosos cuja soma das existências beirava os 500 anos; o macaco com artrose que andava de bengala por necessidade, não gracinha; a adolescente que imitava o canto do curió e cujo destino, desprevenido e exato, deu-lhe a missão de esperar outra pessoa naquela barriga.
No ziguezague entre o antigo fórum e o novo prédio da Câmara, Maciste batucava os calcanhares nas calçadas, empurrado por óbvias e más intenções. Seu ouvido acolheu com interesse agudo - e assustador, para um homem de meia idade - a informação sobre O Flagra. Atrás do fórum, crianças e adolescentes brincavam de adultos, se é que vocês me entendem.
O Flagra não acontecia na boca da noite, mas de manhã cedo ou na hora do almoço, quando a cidade ficava preguiçosa. Para desespero das meninas precoces e celebração dos jovens “ilhados”, permitia-se a licenciosidade, praticamente uma instituição municipal, tão longeva quanto o trapiche, acima da moral, abaixo dos bons costumes.
Era parada dada, como dizem hoje.
O garoto levava a garota para pegar cutiti perto do velho fórum e deixava a rapaziada avisada. No meio da lenha, digamos assim, a molecada invadia o santo e sagrado recanto de amor e sacanagem, no matagal atrás do muro, para anunciar sem piedade, nem um pingo de dó:
- Ahá! Peguei no Flagra! – diziam em coro os quatro ou cinco meninos, olhando nos olhos da vítima, geralmente posta em desconfortável posição física e moral. - Dá pra mim, também, senão eu conto pra todo mundo.
Maciste queria entrar nessa turma, o leviano.
À noite, no picadeiro enfeitado com pisca-pisca das Lojas Americanas, ele exibia a coleção de gorduras e músculos com vaidade exagerada. O pouco do corpo que ainda estava em forma era lambusado com óleo Salada para dar impressão de vigor; o excesso de corpo humilhado pela lei da gravidade era contido, espremido, atochado dentro de um estranho maiô encardido de alças finíssimas, quase delicadas, sobreposto por uma sunga verde limão, um pouco mais acesa do que a bandana puída que lhe moldava a cabeça. De longe, mas não muito, juro por Nossa Senhora das Vitórias, parecia um enorme ovo com corpo de pamonha.
Meu irmão Sérgio, um ano mais sério que eu, tinha certeza, naquele jeito só dele de dizer sem falar, que ia dar merda. Mesmo assim, a gente foi: ele, eu e o Mi, nosso primo, na época magro e cabeçudo como um pirulito e ainda por cima enfeitado com fios de cabelos marrons no estilo da Susi, a boneca da época, neta da Xodó, avó da Barbie.
Sérgio, Cara de Boneca e eu contornamos o circo, espetado na praça do cemitério, para buscar aquele pedaço de lona tucandeira, que deixava entre o chão e a bainha um vão suficiente para que nós, moleques travessos, entrássemos sem pagar.
Varamos a lona na hora em que Maciste arrotava, pávulo:
- Esta cidade não tem homem pra bater em mim!
Foi a terceira e última vez que disse isso e curtiu com olhar de limpador de parabrisas o rosto assustado de cada homem da plateia, reduzido ao pó da insignificância, ao extrato dos medrosos cujos olhares se enfiavam no chão batido, abrindo brechas feito lesmas.
Naquela noite, porém, com a lua cheia sobre a bandeira mais alta do circo, nuvens esparsas pareciam dirigir-se ao quintal de Dona Racha, a Feiticeira; rumores sobre o último ataque do Homem Liso inundavam as mocinhas virgens; relatos indesmentíveis acerca do purgatório de Manoel Benedito, cuja alma carregava o espírito do homem que assassinara, eram difundidos de pai para filho; intensos assovios anunciavam que era de bom alvitre guardar uma porção de fumo para a Matinta Perera; gargalhadas excessivamente estrondosas habitariam o salão estreito do 13, que só mais tarde eu fui saber tratar-se de puteiro.
Naquela noite tensa, insinuante e pervertida, um homem levantou-se no terceiro degrau da arquibancada molhada do Grand Circo Arlequim, apoiando-se na cabeça do Cara de Boneca, ao meu lado, quase esbarrando no ombro do Sérgio, não fosse ele ágil, para pular ao chão e encarar aquele ovo gigante em corpo de pamonha.
Fez-se um coro, quase um uivo, um ohhhh sussurrado, tímido demais para esmurrar a petulância de Maciste, suficiente porém para levantar as orelhas de cada viralata da cidade num raio de 500 metros; acender a intuição do Seu Geraldo, dono da fórmula contra quebrantos e mau-olhado, inquietar a Vó Biloca a ponto de ela fechar o fogo do mingau de massa e apertar os olhinhos verdes; amedrontar o Rasteirinha, atrás da igreja; ecoar na guarita no mesmo instante em que trovejaria a buzina do Rápido Excelsior na hora que o Mata-Rato pegava o volante; arrepiar a pele sensível de Renata, minha primeira namorada, antes de eu conhecê-la, antes mesmo que eu soubesse o poder do Beijo-de-Moça.
Naquela noite lancinante, que entraria para a História de Marapanim e para a crônica dos acontecimentos bizarros da minha infância, sabe Deus por quê, um homem pulou da arquibancada para desbancar Maciste, o homem mais forte do mundo, e redimir a testosterona marapaniense.
Era o Saroquinha.
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A saga de Maciste, a sina de Saroquinha e o incrível poder do Beijo-de-Moça
Eu não tinha mais do que 12 anos e menos de onze pelos no peito, se tanto, quando Maciste, o homem mais forte do mundo, cometeu sua última tolice:
- Esta cidade não tem homem pra bater em mim!
Ele rosnou com propriedade, no centro do picadeiro daquele circo sui generis com nome de palhaço (Arlequim) em cujo elenco havia um pedaço de palhaço com nome de circo: Dom Vitorio – batismo pouco indicado a anões.
Maciste gostava da cidade de cuja masculinidade duvidou. Era o terceiro dia da temporada e ele, um tanto pela figura caricata, mais ainda pela falta de alternativas, era a principal atração do circo.
De dia, adorava flanar pelo quadrilátero de ruas estreitas da parte mais idosa de Marapanim, onde a memória dos colonizadores ainda tem vaga lembrança. Punha-se sob um chapéu de palha com abas mais largas do que o normal, que lhe fazia na testa farta uma sombra em V, calças Lee surradas e ostensivamente justas na virilha, camisa de time, qualquer que fosse, do Bom intento ao Peñarol, tamancos esmaecidos com lâminas de alumínio no salto que de longe anunciavam sua chegada.
Maciste gostava de acreditar que impunha respeito. A cidade adorava fazê-lo pensar assim.
Na cumplicidade do escárnio popular com a própria soberba, Maciste fazia lá o seu sucesso como estrela de primeira grandeza do Grand Circo Arlequim, sobrepujando as dançarinas esquálidas cuja apresentação era uma pobre sequência de pliês; o mágigo decrépito de um truque só, o do barbante; os quatro malabaristas idosos cuja soma das existências beirava os 500 anos; o macaco com artrose que andava de bengala por necessidade, não gracinha; a adolescente que imitava o canto do curió e cujo destino, desprevenido e exato, deu-lhe a missão de esperar outra pessoa naquela barriga.
No ziguezague entre o antigo fórum e o novo prédio da Câmara, Maciste batucava os calcanhares nas calçadas, empurrado por óbvias e más intenções. Seu ouvido acolheu com interesse agudo - e assustador, para um homem de meia idade - a informação sobre O Flagra. Atrás do fórum, crianças e adolescentes brincavam de adultos, se é que vocês me entendem.
O Flagra não acontecia na boca da noite, mas de manhã cedo ou na hora do almoço, quando a cidade ficava preguiçosa. Para desespero das meninas precoces e celebração dos jovens “ilhados”, permitia-se a licenciosidade, praticamente uma instituição municipal, tão longeva quanto o trapiche, acima da moral, abaixo dos bons costumes.
Era parada dada, como dizem hoje.
O garoto levava a garota para pegar cutiti perto do velho fórum e deixava a rapaziada avisada. No meio da lenha, digamos assim, a molecada invadia o santo e sagrado recanto de amor e sacanagem, no matagal atrás do muro, para anunciar sem piedade, nem um pingo de dó:
- Ahá! Peguei no Flagra! – diziam em coro os quatro ou cinco meninos, olhando nos olhos da vítima, geralmente posta em desconfortável posição física e moral. - Dá pra mim, também, senão eu conto pra todo mundo.
Maciste queria entrar nessa turma, o leviano.
À noite, no picadeiro enfeitado com pisca-pisca das Lojas Americanas, ele exibia a coleção de gorduras e músculos com vaidade exagerada. O pouco do corpo que ainda estava em forma era lambusado com óleo Salada para dar impressão de vigor; o excesso de corpo humilhado pela lei da gravidade era contido, espremido, atochado dentro de um estranho maiô encardido de alças finíssimas, quase delicadas, sobreposto por uma sunga verde limão, um pouco mais acesa do que a bandana puída que lhe moldava a cabeça. De longe, mas não muito, juro por Nossa Senhora das Vitórias, parecia um enorme ovo com corpo de pamonha.
Meu irmão Sérgio, um ano mais sério que eu, tinha certeza, naquele jeito só dele de dizer sem falar, que ia dar merda. Mesmo assim, a gente foi: ele, eu e o Mi, nosso primo, na época magro e cabeçudo como um pirulito e ainda por cima enfeitado com fios de cabelos marrons no estilo da Susi, a boneca da época, neta da Xodó, avó da Barbie.
Sérgio, Cara de Boneca e eu contornamos o circo, espetado na praça do cemitério, para buscar aquele pedaço de lona tucandeira, que deixava entre o chão e a bainha um vão suficiente para que nós, moleques travessos, entrássemos sem pagar.
Varamos a lona na hora em que Maciste arrotava, pávulo:
- Esta cidade não tem homem pra bater em mim!
Foi a terceira e última vez que disse isso e curtiu com olhar de limpador de parabrisas o rosto assustado de cada homem da plateia, reduzido ao pó da insignificância, ao extrato dos medrosos cujos olhares se enfiavam no chão batido, abrindo brechas feito lesmas.
Naquela noite, porém, com a lua cheia sobre a bandeira mais alta do circo, nuvens esparsas pareciam dirigir-se ao quintal de Dona Racha, a Feiticeira; rumores sobre o último ataque do Homem Liso inundavam as mocinhas virgens; relatos indesmentíveis acerca do purgatório de Manoel Benedito, cuja alma carregava o espírito do homem que assassinara, eram difundidos de pai para filho; intensos assovios anunciavam que era de bom alvitre guardar uma porção de fumo para a Matinta Perera; gargalhadas excessivamente estrondosas habitariam o salão estreito do 13, que só mais tarde eu fui saber tratar-se de puteiro.
Naquela noite tensa, insinuante e pervertida, um homem levantou-se no terceiro degrau da arquibancada molhada do Grand Circo Arlequim, apoiando-se na cabeça do Cara de Boneca, ao meu lado, quase esbarrando no ombro do Sérgio, não fosse ele ágil, para pular ao chão e encarar aquele ovo gigante em corpo de pamonha.
Fez-se um coro, quase um uivo, um ohhhh sussurrado, tímido demais para esmurrar a petulância de Maciste, suficiente porém para levantar as orelhas de cada viralata da cidade num raio de 500 metros; acender a intuição do Seu Geraldo, dono da fórmula contra quebrantos e mau-olhado, inquietar a Vó Biloca a ponto de ela fechar o fogo do mingau de massa e apertar os olhinhos verdes; amedrontar o Rasteirinha, atrás da igreja; ecoar na guarita no mesmo instante em que trovejaria a buzina do Rápido Excelsior na hora que o Mata-Rato pegava o volante; arrepiar a pele sensível de Renata, minha primeira namorada, antes de eu conhecê-la, antes mesmo que eu soubesse o poder do Beijo-de-Moça.
Naquela noite lancinante, que entraria para a História de Marapanim e para a crônica dos acontecimentos bizarros da minha infância, sabe Deus por quê, um homem pulou da arquibancada para desbancar Maciste, o homem mais forte do mundo, e redimir a testosterona marapaniense.
Era o Saroquinha.
3 comentários:
Você tem razão: é uma delícia!
Ao ponto de querermos mais. Aguardemos o próximo capítulo.
Parabéns!
Paulo, quem conhece sabe a delícia que é o texto do Silber. Grande profissional e amigo, sabe como poucos aguçar a mente de seus leitores com textos extraordinários. Um abraço do amigo ansioso para conhecer o Saroquinha.
Celivaldo Carneiro
Leio seu blog há vários anos. E nunca postei algo aqui. Contudo, o percuciente e levíssimo texto do Soroquinha me faz dobrar a cerviz e dizer: Salve a verve do Soroquinha, a mim apresentado agora, mas nunca tardiamente! Conheço pouco Marapanim, no entanto, Soroquinha a desenhou sobre os arquétipos das pequenas cidades de tal maneira que, juro! Andei por lá por dentro do texto, reconhecendo até aquela hora modorrenta em que a sesta torna a cidade incrivelmente silenciosa! Espero o próximo capítulo do entrevero entre o Maciste e o destemido sujeito da arquibancada! Paulo Uchoa www.carta-z.blogspot.com
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