quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Maciste x Saroquinha (2): Do Céu ao Inferno

Por PAULO SILBER (aqui você lê a parte 1)

Saroquinha nunca foi homenzarrão.
Baixo demais para meter medo, era muito acanhado para impor presença. De poucas palavras, tinha o jeito ressabiado dos índios e a disposição serena do caboclo – pronto para o que der e vier, mas só quando viesse.
Na miscigenação de suas origens, puxou o corpo do pai. Tinha músculos definidos, mas nada exagerados; os braços curtos não mediam dois palmos dos pulsos aos ombros; pouco pescoço para a cabeça avantajada, redonda demais para cabelos tão curtos, o que lhe dava a nuca alongada, cujo tuitiço saliente explicava o apelido “Meu Boi” - nunca mais pronunciado desde aquela noite, você saberá por quê.
Era discreto como a mãe. Herdara dela, também, a humildade quase subserviente, o altruísmo desaconselhável na condição em que vivia, o olhar intenso de quem precisa dizer com as pupilas mais do que a boca sabe. Os olhos, porém, eram miúdos, praticamente um feixe rasgado no rosto.
A pele seca do avô, sem vestígio de pelos, lhe emprestava a aparência de mais velho aos 19 anos.
Comia de tudo, mas dava ao caldo de peixe cozido - com pouco sal, uma pincelada de limão, cheiro verde por cima e alfavaca no meio – valor maior que o da ventrecha. Gostava de tomá-lo com barulho, a ponta da colher de alumínio no bico dos lábios, em ritmo frenético, só interrompido para sugar a cabeça de uma gó ou o dorso espinhento da pratiqueira, algumas das poucas concessões sólidas naquele repasto líquido e saboroso.
Jogava bola sem talento, mas marcava direitinho, era aplicado. Não conhecia outros esportes, embora dominasse segredos de brincadeiras comuns no tempo em que a tecnologia era apenas um aviso de Júlio Verne, nome esquisito de que não gostou quando o viu esculpido em alto relevo na capa dura de um livro vermelho, na Casa da Leitura. Sentiu nojo do sobrenome, ainda confuso diante de alguns fonemas primos.
Era bom de fura-fura, não errava peteca de palmo em cima, tinha destreza no bole-bole, sabia descair curica, nadava sem estilo, mas se mexia rápido, abanando a cabeça para os dois lados sem necessidade. Era um dos poucos, na adolescência, capaz de cruzar o rio Marapanim na vazante, até a c’roa, e voltar remando sem exibir cansaço.
Em casa, tecia a mecha da lamparina mais rápido do que os oito irmãos. Cabia a ele, diariamente, encher os potes, limpar o jirau, colher goiabas e perseguir o porco até botá-lo no seu devido lugar, mesmo sabendo que o soltaria à noite.
Saroquinha era um caboclo comum, aconchegado na vida pacata que o mundo lhe ofereceu. Se lhe avisassem de supetão, nessas voltas que o destino dá, que caberia a ele forjar de bate-pronto o décimo-primeiro Mandamento, tenho certeza que diria:
- Não te afobarás!
Naquela noite, no entanto, Saroquinha se afobou.
Descascou-se da candura, exorcizou a discrição, esconjurou as origens, sacrificou a humildade, expurgou a ternura, deixou a pele de Davi. Como se abrisse um zíper atrás das próprias costas e emergisse de lá um novo homem, disposto a tudo, ele pulou da arquibancada, após despentear Cara de Boneca, paralisar meus instintos e confirmar a previsão do Sérgio de que a noite era fértil para desgraças, e encarou por alguns segundos aquele tal de Maciste, o pretenso Golias saltimbanco.
Aquele que se anunciava o homem mais forte do mundo gargalhou com longo solo no gogó. Desdenhou de Saroquinha, como um menino bem dotado ri do infortúnio anatômico do adversário ao flagrá-lo nas olimpíadas infantis, durante a prova de quem mija mais longe. Tripudiou da valentia inusitada daquele gnomo maluco, cujos braços nem preenchiam as mangas da camisa. Desprezou o ímpeto heroico do miserável nativo, ainda imberbe, que ousara apresentar-se para a luta. Debochou do insensato arrebatamento daquela abjeta mistura de negro e índio metida a gente.
Impávido e decidido, Saroquinha se dirigiu ao picadeiro, o ringue das diferenças gritantes, para a batalha da honra contra a vergonha, o tirateima entre o intrépido e o soberbo, o duelo do falso Hércules com o rascunho de Super-Homem.
Maciste o fulminou com o olhar ao vê-lo se aproximar. Com a palma das mãos estendidas e os dedos puxando o vento, na condição de um convite cínico, ele ria com a boca torta dos devassos, exibindo a lacuna de um canino. Esperou o desajeitado Saroquinha, aquele Rocinante aventureiro em pleno delírio, como se fosse o próprio Cérbero, ao receber uma alma infeliz que haveria de nunca mais retornar à sua vil existência depois de cruzar o Portal de Hades.
Não havia tambores para rufar na singeleza do circo. Não presumiam os artistas daquela pálida alegria mambembe que os dobrados de um só tarol seriam poucos para tamanho acontecimento. A expectativa ficou restrita à ressonância dos nossos corações acelerados, à boca seca, aos cílios petrificados, aos bíceps tesos, à sobrancelha erguida, às orelhas quentes de quem se vê diante do espetáculo inesperado do tudo ou nada, de quem se descobre testemunha inocente do agora ou nunca.
Sérgio, sempre calado, me disse tudo com os olhos embora eu não tivesse prestado atenção. Cara de Boneca encolheu-se como um jogador perna-de-pau que pede ao companheiro para passar a bola ao outro, porque ele está prestes a ser marcado. Eu registrei na memória, intuitivamente, cada segundo daquele duelo. Para sempre.
Vi as parábolas incertas de socos que furavam o ar e o impacto cruel de punhos puxados com força extrema por queixos que tinham o condão de ímãs. Vi joelhos cegos e pés forões errarem o alvo oferecido e uma sequência de membros ligeiros se multiplicarem, rasgando músculos alheios como quem martela um bife. Vi todos os tipos de suores, de cansaço e triunfo, susto e certeza, tibieza e decisão. Vi o gigante derreter, o miúdo agigantar-se. Eu assisti à erosão do orgulho e à unção da simplicidade;
Só despertei dessa sequência alucinante de sensações quando um estrondo abriu caminho ao grande urro de vitória, que pareceu ensaiado mas nem provável era. A arquibancada tremia como se nós, da tenra idade à mais senil presença, fôssemos tomados pelos sintomas de Parkinson, prenúncio talvez do Mal que se avizinhava.
Maciste, desacordado, lambia o chão. Saroquinha, ofegante, pisava-lhe as nádegas.
Mas não foi fácil. Nem seria, segundos depois, tão glorioso como parecia.
Maciste morreu.
Saroquinha, nosso herói, era agora um assassino. Com a mesma velocidade em que Geni flertou com o Céu para casar-se com o Inferno.

6 comentários:

Anônimo disse...

Paulo:
É uma delícia ler o Silber. Queremos mais Marapanim.
Que tal, agora, você nos deliciar mais ainda, com seus causos santarenos.
É bem melhor dois Paulos voando com suas próprias talentosas mãos.
Afonso Klautau

Poster disse...

Grande Professor!
Mas nenhum causo supera o do Maciste x Saroquinha. Você vai ver.
Hehehe.
Abs.

Anônimo disse...

Mano Bemerguy.
Não sou chegado a responder comentários, na minha inseparável esquisitice.
Mas Afonso Klautau é Afonso Klautau.
É nosso mestre, minha referência, nem precisava ser meu amigo.
Obrigado, Afonso.
Se você curte meu texto, é um dos culpados - certamente, um dos maiores e mais importantes.
Beijo grande.
E só, pra não parecer viadagem.
O João Vital - tu saaaaaaabes - tem um ciúme...

ps

Anônimo disse...

Conclamo todos a irmos à Marapanim conhecermos esse Saroquinha... mas um pouco de longe, claro.

Anônimo disse...

Saroquinha urgente pra presidir a cpi da Alepa!!

Anônimo disse...

Grande Paulo Sílber.
Vê se manda logo a continuação e não desaparece.
Em tempo (como dizia o Didi): não desapareçam, todos vocês que escrevem bem.
Beijinhos Mano, Afonso e Paulo
Regina Alves