sexta-feira, 18 de maio de 2012

Na verdade, a comissão é de limpeza

No blog Na Rede, da jornalista Ana Diniz, sob o título acima:

Eu não entendi bem porque se chama “da verdade” essa comissão que foi criada para, pelo menos na intenção, iluminar os desvãos da violência política recente.
A verdade é um valor cuja definição é polemizada há milhares de anos; a verdade histórica, entretanto, geralmente é a História do ponto de vista do vencedor. Além disso, é um princípio bem conhecido aquele que recomenda uma perspectiva temporal para que se analisem os fatos: as informações do passado recente são sempre incompletas, a complexidade das sociedades humanas não permite que se veja o quadro se estivermos muito próximos dele.
A lei que cria a comissão estabelece, como finalidade de sua atuação, “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” cometidas ou sofridas durante o período da ditadura militar e, para isso, deverá por às claras tudo o que se praticou naquele tempo em nome da política e da ideologia.
Ou seja: vamos lavar os porões. E isso não é bem uma questão de verdade, mas de limpeza.
Eu gostaria que essa limpeza fosse mais abrangente: afinal de contas, os presos políticos sofreram o que sofriam os presos comuns. As violações de direitos são as mesmas: a tortura foi um instrumento policial considerado válido até bem recentemente. O pau de arara, as surras e os choques elétricos, além de alguns outros bizarros instrumentos (uma pequena amostra pode ser vista no minimuseu do “São José Liberto”, em Belém do Pará) faziam parte do cotidiano do investigador e do preso. Se a causa era política ou não, para mim não interessa: todos aqueles submetidos a esses métodos de apuração da verdade eram pessoas humanas e tiveram seus direitos violados.
Porque todos os setores envolvidos nas listas de assinaturas pedindo a revisão política se omitem nesse ponto e se recusam a ver o suspeito de um crime comum em igual condição à do suspeito de um crime político? Porque existe indenização, concedida por mecanismo administrativo, para os inocentes torturados ou punidos em razão de ordem política e não existe para os inocentes igualmente torturados ou punidos na apuração de crimes comuns? Estes têm que se submeter a uma longa demanda judicial, mesmo com o corpo e a vida mutilados. E não são poucos...
Alguns veem nessa comissão um passo para a revisão da anistia. É uma posição tola. Além de não haver condições objetivas – o que aconteceu há 50 anos não vai mobilizar as massas – condenar à prisão idosos senhores que foram um dia foram cruéis apresenta o risco considerável de que a imagem de hoje se sobreponha à de ontem, criando correntes de simpatia que geram certas ideias indesejáveis.
Eu gostaria também que a limpeza abrangesse outros setores, que não o carcerário. Principalmente, tirar da administração pública o restolho que ficou desse período. A herança da ditadura está em toda a organização tributária e orçamentária brasileira: ela é profundamente desrespeitosa com o cidadão, é ditatorial (ou imperial, se quiserem) e nos faz pagar ao Estado muito mais do que devíamos. A adoção da democracia de multidões só piorou as coisas: as diferenças regionais são cada vez mais profundas. Está, também, na organização das polícias (as polícias militares com seu viés de infantaria, as polícias civis circunscritas a divisas que se tornam mais fluidas cada dia que passa) e responde, em boa parte, pela sua inoperância e pelas sucessivas crises de segurança que vivemos em todo o país.
É também herança desse período a inflexibilidade burocrática que emperra todas as iniciativas e alimenta a corrupção. A república brasileira do papel carimbado se consolidou durante a ditadura, efeito direto do hábito militar, fruto das necessidades de guerra, de reduzir tudo a manuais e regulamentos. Houve uma tentativa, nesse período, de podar os excessos, com o Ministério da Desburocratização. Ficou na tentativa, e até hoje, diante da administração pública, a pessoa vale menos que o papel que ela exibe.
Espero que a comissão consiga preencher algumas reticências ou trechos obscuros da narrativa histórica – mesmo que só nossos tataranetos possam saber se ela conseguiu.
 

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