domingo, 14 de setembro de 2008

Pelo fim da impostura




O medo da verdade é perigoso numa sociedade livre. Em certo sentido, é o avesso da mitológica caixa que Zeus confiou a Pandora, aquela que jamais deveria ser aberta porque continha todos os desastres do mundo. Caixas cheias de segredos sempre foram fascinantes. Mas a velha fixação da humanidade em receptáculos cheios de mistérios ajuda a explicar. E a caixa preta da hipocrisia, quando deve ser aberta?
Esticando ainda mais a metáfora, a palavra caixa preta passou a ser usada em tom crítico para designar tudo aquilo, instituição ou sistema, que se considera pouco transparente. Ocultar a caixa preta é um ardil enganoso, mas insistimos em simular que nada aconteceu, para que tudo permaneça.
Quando começa a vida? É essa a questão por trás do julgamento da interrupção da gravidez em casos de anencefalia. O Supremo Tribunal Federal (STF) é a mais alta instância judicial do país. Os 11 ministros indicados pelo Nosso Guia e sem tempo determinado de mandato apreciam as ações de interesse da Nação. Entre os temas em pauta estão, por exemplo, o julgamento dos acusados do mensalão, a legalidade das cotas raciais em universidades, o direito ao casamento homossexual etc.
Na última semana de agosto, passado entrou em discussão uma questão de alcance histórico capaz de reunir ética e religião, filosofia e direito. Quando começa a vida? Ou em outros termos, a Justiça pode decidir quando ela começa? Enquanto o feto está ligado ao cordão umbilical, a responsabilidade é da mulher que o carrega. Quando a vida é improvável ou indesejada, deve ser discutida.
O caso pontual que começou a ser julgado no STF é a possibilidade de interrupção da gravidez em caso de anencefalia, quando o feto não tem cérebro nem caixa craniana. O tubo neural - estrutura embrionária do sistema nervoso - se fecha por volta da quarta semana de gravidez. As causas mais comuns são mutações genéticas ou falta de ácido fólico no organismo. A anomalia acomete uma em cada 1,6 mil crianças. É sentença de morte. Apenas 8% dos bebês sobrevivem mais de uma semana. Um em cada cem vive de um a três meses.
A legislação brasileira só permite o aborto em dois casos: estupro e risco de morte para a mãe. Desde o fim da década de 1980, no entanto, juízes de todo o país têm autorizado a interrupção da gravidez em casos no qual o bebê não tem nenhuma chance de sobreviver fora do útero. Nos últimos quinze anos estima-se que 5 mil gestações de anencéfalos tenham sido interrompidas legalmente.
O problema torna-se complexo porque as gestantes dependem da boa vontade da burocracia e dos médicos para obter um laudo atestando a anomalia como: uma ultra-sonografia morfológica, uma tomografia computadorizada, capaz de detectar alterações morfológicas embrionárias e ou fetais em desenvolvimento. E, principalmente dos juízes, que avaliam os casos. Muitas vezes a autorização só se efetiva depois do nascimento. A ação do STF é uma tentativa de garantir um atalho para essas mulheres.
É debate caloroso. O argumento central de quem se posiciona contra o aborto de anencéfalos é o direito à vida, garantido na Constituição Federal e no quinto mandamento do Exodus, o segundo livro da Bíblia cristã (o "não matarás"). Para os defensores da liberdade de decisão, não se pode falar em aborto quando não há chance de vida. "Não há o que fazer pela saúde do filho. Mas há como cuidar dessas mulheres", afirmam Débora Diniz, professora de bioética na Universidade de Brasília, e Heverton Pettersen, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, em O Estado de S. Paulo. Débora e Pettersen apresentam ainda outro dado: quase todos os países democráticos autorizam a retirada do feto nesse caso. O Brasil é uma exceção entre países de medicina desenvolvida.
Novembro deverá ser de comemorações importantes para o ministro do STF Marco Aurélio Mello. Ele completa 30 anos de magistratura e, para o mesmo mês, prevê a aprovação do aborto de fetos anencéfalos - um dos processos mais polêmicos que já chegaram à alta corte brasileira e do qual ele é relator. Além de ter certeza de que esse tipo de aborto será aprovado, Mello acredita que a discussão e aprovação da interrupção da gestação de anencéfalos devem ampliar o debate sobre o aborto em geral e outros temas relacionados ao direito à vida, como a eutanásia.
Sem dúvida, o debate será um passo importante para que os ministros do Supremo selecionem elementos que, no futuro, possam respaldar o julgamento do aborto de forma mais ampla. O sistema atual está obsoleto. Por que a prática de aborto de fetos potencialmente saudáveis no caso de estupro é permitida? Esse tema é cercado de incongruências.
Estima-se em 1 milhão de abortos clandestinos no Brasil. Isso implica um risco enorme de vida para a mulher. Na maioria das vezes, o aborto é feito em condições inexistentes de assepsia, sem um apoio médico de primeira grandeza. Há um fingimento aí. O aborto é punido por normas penais, mas é feito de forma escamoteada. Nosso sistema é laico. Não somos regidos pelo sistema canônico, mas por leis. A sociedade precisa deixar em segundo plano as paixões condenáveis. O STF é a última trincheira do cidadão. Tomara que o ministro Marco Aurélio abra a caixa-preta da hipocrisia.

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SERGIO BARRA é médico e professor
sergiobarra9@gmail.com

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