quinta-feira, 21 de maio de 2015

O carimbó da Tia Pê


Tenho uma alma musical. Nasci sob os acordes das bandas União Vigiense e 31 de Agosto. O Sol ainda não havia nascido quando se ouvia as batidas do bumbo do velho Jipe, músico veterano, assim chamado, marcando as divisões mais fortes de alegres dobrados. Mais de perto, era possível agora ouvir os metais, especialmente de Simi, e seu trompete afinadíssimo. Estes eram dias de “alvoradas”, geralmente, atalaias de importantes festas religiosas e cívicas naquela cidadezinha.
Vigia sempre foi uma oficina de música. Moleque, eu ia ouvindo os músicos treinarem em suas casas. Horas de ensaio. Música pra todo gosto, especialmente mesmo os dobrados e as marchinhas. Nos dias de ensaio geral, eu corria para a porta das sedes da União e da 31 de Agosto. Não precisaria nem ouvir a apresentação, bastaria aqueles treinos sonoros. Minha maior alegria era quando alguém errava o tom no finalzinho da peça. “Do começo, de novo!”, era tudo que eu esperava ouvir do maestro, transformando em troféu pessoal o castigo alheio. Eu vibrava.
Mas não eram apenas as bandas e os músicos isolados do dia. Não. De noite, outra música me tirava de casa: o carimbó. Quando o Sol descia a linha do horizonte, Vigia acordava as estrelas com tambores, clarinetes e flautas. E eu queria testemunhar esse despertar. Corria seguindo a cadência surda dos tambores até que, semelhante ao que acontecia com as bandas, eu começasse a ouvir os instrumentos de sopro.
No carimbó, os tambores deitam no chão porque não têm pressa. Assim servem de assento ao músico e facilitam o movimento das mãos, que parecem voar enquanto tangem a pele curtida. O músico de carimbó também canta, todos cantam, enquanto outros dançam, as mulheres segurando a borda das saias longas e coloridas, os homens rodeando-as encurvados, alternando o movimento dos braços, ora para frente, ora para trás, como a imitar os gestos do pescador quando rema ou lança suas redes no rio em busca do pão nadador.
Duas figuras destacavam-se nas décadas de sessenta e setenta: Tia Pê e o Gelo. Tia Pê era uma lendária figura do carimbó, tinha a música no sangue, líder natural desse ritmo vibrante, que não deixa ninguém triste ao escutá-lo. Não foram muitos os meus contatos com ela porque, até onde sei, Tia Pê morava lá pelo bairro do Amparo, na entrada de Vigia, bairro que hoje tem uma escola pública com o nome dela, porém, muito longe de onde eu morava. Todavia, mesmo não podendo chegar junto, eu curtia as batidas, aproveitando o fácil caminho que os sons graves encontram nas ondas do ar, algo bem diferente do que acontece com as notas agudas.
Mas era o Gelo que eu mais admirava. Gelo era um homenzarrão albino, daí o nome. Tão branco e tão louro, mal conseguia abrir os olhos. Era assim que eu o encontrava: sentado sobre um tambor, tocando e cantando horas sem parar. O repertório você sabe: nosso cotidiano caboclo, com suas histórias de pescador e caçador. Música simples, de uma leveza impressionante, todavia, capaz de contagiar o ser humano mais estático. Curava depressão na hora.
Com o passar dos anos, o Gelo foi adoecendo, até que correu a fama que os pés do homem estavam cheios de bicho, e era verdade. Nas últimas aparições – últimos anos, diga-se – o músico comparecia descalço porque não tinha mais sandália ou sapato que lhe coubessem. A olhos nus, os bichos estavam deformando o artista, mas este parecia nem se importar, pois cantava e tocava com a mesma empolgação de sempre. Um detalhe: nunca vi ninguém ingerir bebida alcoólica durante as batidas de carimbó. Se bebiam, bebiam antes ou depois, jamais durante. Aliás, falava-se que o Gelo era alcoólatra, mas se era nunca vi.
Os tempos passaram, e eu continuo gostando de carimbó. Não vou mais às festas nem procuro ouvir músicas, mas as batidas ficaram gravadas. Daí, algumas canções acabam nascendo e renascendo. Gosto muito de tocar carimbó no violão, mas só pra lembrar Waldemar Henrique, por exemplo. Suas músicas são a nossa cara, têm cheiro de mato e gosto de igarapé, lembram-me que um dia fui um índio, que continuo sendo. Salve o carimbó! Salve, Vigia! Saudades do Gelo e da Tia Pê.

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RUI RAIOL é escritor
www.ruiraiol.com.br

Um comentário:

Anônimo disse...

O ritmo interiorano, que encanta a todos que curtiram e foram agraciados com momentos de pura inocência e felicidade daquela época. Saudades de uma vida mais calma, sem violência urbana e de descobertas.