terça-feira, 26 de março de 2013

Os alhos e os bugalhos


Por Luciano Martins Costa, do Observatório da Imprensa
Os debates sobre o futuro do jornalismo publicados pela imprensa tradicional costumam passar por cima de uma diferenciação essencial entre aspectos que são naturalmente imbricados como escamas de peixe: comunicação, jornalismo, publicidade, tecnologia e imprensa.
O centro da questão é quase sempre a imprensa, tema geralmente usado como biombo para a discussão de problemas tão diversos quanto o faturamento das empresas de comunicação, a distinção entre publicidade e jornalismo, a regulamentação do setor ou o desenvolvimento de tecnologias.
Na edição de segunda-feira (25/3) do Estado de S. Paulo, o presidente do Festival Internacional de Criatividade de Cannes, Philip Thomas, expõe o nervo do problema ao afirmar que a produção de conteúdo informativo de interesse de empresas e marcas vai enfraquecer os anúncios tradicionais de jornal e televisão.
Com visita ao Brasil marcada para esta semana, Thomas toca num ponto sensível para as empresas brasileiras de mídia, já assombradas com as dificuldades para manter o valor da publicidade diante do avanço das mídias digitais: a divisão entre as áreas editorial e comercial dos veículos de comunicação. Ele defende uma mudança no sistema que divide os dois setores, com a preservação de uma clara diferença nas atribuições de cada campo, mas entende que jornalistas também podem se especializar na produção de textos e imagens de interesse corporativo.
Embora reconhecendo que “a maioria dos jornalistas do editorial não quer fazer conteúdo de marcas”, Thomas lembra que os veículos precisam disputar a atenção do público com informações relevantes. Na sua opinião, como as agências de publicidade têm a mesma necessidade, veículos e agências vão trabalhar juntas para produzir informação de interesse de empresas e marcas.
O executivo do Festival de Cannes tem razão no que toca exclusivamente às necessidades de negócio, portanto aos interesses das empresas de comunicação. Acontece que o valor dessas empresas depende quase sempre do conteúdo jornalístico, e se consolida quanto mais autônomo for o processo de criação desse tipo de informação. Portanto, se não for administrada com cautela a divisão entre jornalismo e comunicação corporativa, o veículo pode perder valor em curto prazo ao misturar alhos com bugalhos.
Marketing dissimulado
Já existe controvérsia suficiente sobre o papel desempenhado por jornalistas na função de assessores de comunicação. Também é bastante conhecida a dependência dos veículos de comunicação em relação aos comunicados produzidos por empresas por meio dessas assessorias especializadas.
Os conteúdos informativos de interesse específico de empresas e marcas certamente ganham mais credibilidade e valor se forem confundidos com o conteúdo jornalístico, e nem sempre o sistema editorial consegue identificar a propaganda contrabandeada para dentro do seu campo próprio por meio dos chamados press releases.
Sem uma regulamentação que defina claramente os campos de interesse, também o público fica submetido à possibilidade de comprar gato por lebre, consumindo “informação corporativa” como sendo jornalismo. Nesse cenário, a presença do presidente do Festival de Criatividade de Cannes no Brasil, com sua agenda polêmica, pode produzir mal entendidos.
Submetidas a enorme pressão pelo crescimento e a capilaridade das mídias digitais, as empresas tradicionais ainda não conseguiram criar uma fonte de receita que substitua os anúncios publicitários. Ao mesmo tempo, as agências de publicidade vivem da manutenção artificial do valor de seus produtos, cuja visibilidade se reduz drasticamente com a profusão de meios.
No ambiente das mídias sociais digitais, onde o produto jornalístico se mistura a ações de marketing dissimuladas de jornalismo e aos conteúdos produzidos pelos milhões de participantes, torna-se impossível diferenciar o que é informação daquilo que pode ser originalmente um boato imaginado por publicitários para pegar carona na credibilidade de uma notícia.
Para complicar, não se pode ignorar também que a falta de alternativas pode levar muitos jornalistas a fazer jornada dupla, trabalhando parte do período como profissionais de imprensa e parte como redator de conteúdos corporativos.
Nesse caso, onde vai parar a credibilidade da imprensa?

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