sábado, 12 de outubro de 2019

O Círio, o médico e o patarrão

Por OSVALDO SERRÃO, vice-presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas

O escritório do advogado criminalista é, e sempre será, uma fonte inesgotável de estórias reais, com suas dores e mazelas, porque, afinal, a matéria prima do seu trabalho diário são os dramas das vidas das pessoas, independente de religião, classe social e econômica.
O mais fascinante é que esses casos nunca são factualmente iguais. Podem até se idênticos, mas cada um detém sua sutileza e peculiaridade.
Certamente, aí que reside a beleza e o fascínio da advocacia criminal e, sem dúvida, o grande diferencial das demais áreas da advocacia.
Inúmeros são as estórias que pululam no vídeo tape da minha memória. De vez em quando, recordo de um e outro. Cada uma mais pitoresca que a outra. Às vezes, não anoto, e as acabo esquecendo.
Nunca consegui, por exemplo, tirar da lembrança um caso que chegara ao meu escritório logo no início da carreira, ocorrido durante o período do Círio de Nazaré, o mais evento da comunidade católica paraense. Não, propriamente, por ele em si, que abriga um drama lamentável, mas pelo seu aspecto hilariante.
Doutor Pablo Antero, a pessoa que me contratara, era um jovem médico recém-formado, extremamente caridoso, sempre pronto a colaborar com as pessoas que necessitavam dos seus serviços.
O destino, contudo, lhe reservara uma amarga experiência pessoal e profissional, quando procurado por uma velha enfermeira que conhecera no Pronto Socorro Municipal, onde estagiara desde o primeiro ano de faculdade.
Desesperada, lhe pedia ajuda para um gravíssimo problema. Disse-lhe que havia sido procurada por uma comerciária que lhe implorava para fazer um aborto porque teria sido vítima de estupro.
Sensibilizada, prometeu ajudá-la, marcando o ato para uma quinta-feira, anterior ao domingo do Círio, já que folgaria do trabalho no sábado, e seus pais, certamente, não iriam desconfiar.
E assim foi, Ocorre que, devido grande hemorragia durante o procedimento, a moça desmaiou, ficando desacordada por um bom tempo.
Em pânico, ainda de madrugada, vai à casa do Doutor Pablo Antero em busca de ajuda médica.
Solícito como sempre, foi imediatamente examinar a moça, conseguindo reanimá-la, ainda que precariamente.
Disse-lhe, então, muito preocupada com seus pais, que, àquela altura, estavam sem qualquer notícia dela.
Percebendo que, aparentemente, se recuperava, mais uma vez, pelo coração, se propôs a ajudá-la, indo, então, a casa dos seus genitores acalmá-los, e tentar convencê-los da nobreza do gesto da enfermeira em ajudar a filha a se livrar da gravidez indesejada, e, em que consistira sua real participação no episódio.
Convencidos com a explicação, o casal de idosos pediu-lhe que os levasse até a casa da enfermeira para ver a filha querida, que deixara em repouso.
O destino, porém, iria lhes pregar uma imerecida e indesejável peça, porque se depararam com a dantesca cena da moça morta numa cama, devido à grande perda de sangue. A enfermeira fugira do local.
Nesse exato momento, os pais da moça começaram a tachá-lo de assassino, dizendo aos berros que a história da enfermeira era pura invenção sua.
Em pânico, o pobre Doutor Pablo Antero sai em desabalada carreira para seu carro e se refugia em casa.
No dia seguinte, as manchetes dos jornais: Polícia caça médico assassino ... Médico criminoso pode ser preso a qualquer momento.
Já estamos na sexta-feira que antecede o Círio. Pablo está desesperado. Não come, não dorme, e o menor ruído é o suficiente para se apavorar. À tardinha, após muita insistência de sua mãe, resolve ir deitar-se no cômodo superior do imóvel.
Enquanto isso, no imenso quintal, a molecada, ansiosa, aguardava o momento da correria para capturar o patarrão que seriam abatido para o almoço do Círio.
Lá em cima, totalmente alheio, Pablo está com os olhos fixos no vazio do teto, ao sabor dos seus mais negativos pensamentos.
De repente, entra em desespero ao ouvir os alucinados gritos vindos de baixo: “Corram. Cerquem a casa. Não deixem ele fugir. Se pular o quintal já era.
Pronto. No seu já fragilizado raciocínio, imaginou que a polícia acabara de chegar, e, pelos berros, pareciam dispostos a levá-lo preso de qualquer maneira.
Pensa rápido. Vai para para a porta do quarto, e grita, em plenos pulmões, já com as mãos para os altos: “Não atirem. Eu me rendo. Estou desarmado.”
Enquanto isso, ao fundo do quintal, as crianças, em altas gargalhadas levantavam, como troféu, o patarrão que acabaram de perseguir e apreender.

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