Por Paulo Sérgio Leite Fernando, no Consultor Jurídico
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, independentemente dos defeitos que tem — e são muitos — é culto, poliglota, qualificado ao exercício da jurisdição e obstinado na defesa de suas opiniões, fazendo-o, aliás, deseducadamente, em muitas oportunidades. Falta de elegância no trato com os semelhantes pode não ser uma deficiência, confundindo-se tal conduta com franqueza. É mais ou menos como a criatura, depois de receber um pisão violento no calinho de estimação enquanto viajando no metrô da capital paulista, dizer ao descuidado agressor: “Não desculpo não, isso doeu muito e você precisa prestar mais atenção nos seus coturnos”. O ministro Barbosa faz dessas coisas, com algumas originalidades: às vezes não é pisoteado, mas reage como se a hipótese fosse verdadeira. Vai daí, assola o Regimento Interno do Supremo, sim, intromete-se na manifestação dos outros ministros, agride-os, perde o equilíbrio emocional e, no fim das contas, leva a disputa a um tom absolutamente inadequado ao contraditório em qualquer tribunal e, com razão maior, ao mais elevado padrão que a jurisdição brasileira tem. Franqueza, sinceridade, autenticidade, ausência de censura interna, desatino emocional, constituem atributos, conforme já exposto, nem sempre prejudiciais à imagem de quem os exibe. Entretanto, tudo tem volta. Ou, se não tem, deve ter, cedo ou tarde. Dentro de tal contexto, se e quando um ministro da Suprema Corte vai a público e tece críticas ao sistema judiciário brasileiro, precisa ouvir também, com a mesma deselegância composta nas críticas feitas, pois, juiz ou não, togado ou não, tomando ou não assento sobre os lambris do Supremo Tribunal Federal, é um ser humano como outro qualquer, não merecendo diferenciação sequer no sofrimento, porque o ser humano nasce, cresce, vive, faz filhos, projeta-se profissionalmente ou não, ganha ou não concurso de longevidade e, no fim das contas, morre também, com ou sem moedas nos olhos a garantirem a passagem nas algibeiras do barqueiro Caronte, mas passa desta para melhor — ou pior, dependendo das sombras indevassáveis.
Vêm a pelo tais considerações em contracrítica seca a declarações prestadas pelo ministro Joaquim Barbosa numa palestra proferida recentemente. Em princípio, seríamos confusos, complexos, profusos, vagarosos, repletos de possibilidades de irresignações contra decisórios, “expressões vivas de um bacharelismo decadente, palavroso, mas vazio e, sobretudo, descompromissado com a eficiência”. O ministro presidente da Suprema Corte, enquanto o diz, tem preocupação aprofundada com os eflúvios de tal comportamento no meio social, na comunidade, enfim. Em outros termos, as possibilidades ofertadas à resistência dos perseguidos seriam demasiadas, vituperando-se a singeleza. O ministro Joaquim Barbosa, com todas as comendas e lhe serem postas nos peitorais, nunca advogou. Se e quando, lá atrás, passou pelos dissabores normais àqueles que não têm a felicidade de compartilhamento de bons dinheiros nos embornais familiares, estaria a dividir o desdouro com milhares e milhares de brasileiros, ressaltando-se, nisso, uma razão para envaidecimento na maturidade. Há, até nas vestes talares, diferença entre uns e outros, cumprindo afirmar que todo juiz, todo integrante do Ministério Público, todo aquele a receber as místicas missões de perseguir e julgar, deveria visitar, uma vez só que fosse, uma das celas superlotadas dos presídios brasileiros, aquele mesmo cárcere que é o que é em razão da omissão costumeiramente criminosa de vigilância, saneamento e repressão da conduta daqueles que deveriam guardar e não guardam, prestar alimentação e não prestam, cuidar da saúde dos presos e não cuidam, evitar estupros repetidos a transformarem moços branquelos em mulheres de presos, isso logo ali, na esquina da Suprema Corte, ou mesmo nos subúrbios da capital federal, sem que se fale na podridão dos ergástulos espalhados pelo resto do Brasil. O ministro Joaquim Barbosa, em benefício da simplicidade e da singeleza, está a se esquecer de que cada processo seu tem gente, tem mulatos, brancos, negros retintos e até índios (não se esquecendo das mulheres). O ministro Joaquim Barbosa, presidente da Suprema Corte, tem sonhos, porque sonhar é característica da qual ser humano algum pode livrar-se. É malcriado e deseducado enquanto critica um sistema que, desgraçadamente, hoje, começa a ser envenenado por restrições ao próprio conhecimento do Habeas Corpus, melhor coisa que o Brasil poderia oferecer ao mundo e que está a mais não poder, tudo em benefício da pletora de processos e da necessidade de agilização das tramitações. Se e quando o texto oferecido em síntese à comunidade for o retrato da plenitude da palestra, o ministro Joaquim Barbosa está a pretender a submissão do ser humano à vontade expressa no social, conceito nazista, sim, a relembrar Dachau, Auschwitz, Bergen, Treblinka e outros campos de concentração a se transformarem, ao tempo, em depositários hipotéticos da vontade popular. O composto penitenciário brasileiro, ministro Joaquim Barbosa, é pútrido. Se e quando passando pelas esquinas onde sediados os cárceres da nossa pátria, os cidadãos, negros ou não, hão de precisar tapar as narinas para se livrarem do cheiro de esgotos entupidos, da batata adocicada e da creolina com que se tenta, às vezes, enganar a atenção do passante.
Não fale, portanto, o ministro presidente da Suprema Corte em sistema jurídico confuso, na medida em que o Brasil, entre todos, mas todos os países do mundo, é aquele em que mais se respeitou, no papel, o conjunto de garantias e direitos deferidos ao cidadão. Pense nisso o ministro presidente da Suprema Corte, enquanto presidente for, e depois de o ser, também, porque, por fatalidade, todos são enquanto forem e, depois de o serem, hão de pagar pelo que disseram. Dentro de tal contexto, é melhor que o presidente da Suprema Corte leia ou ouça isso tudo enquanto o é porque, depois, a agressão perde sentido, na medida em que alcança alguém que mais não é. A confusão do sistema jurídico brasileiro é ligada, sim, ao respeito ainda votado aos milhares de reclusos olhando, pelos postigos das celas, a distância faltante para a chegança de alguém, togado embora, a torcer o nariz enquanto vê e sente a decadência moral da nossa execução penal, numa hipócrita postura — esta, sim, simuladora —, fingindo-se o exercício da Justiça. Não se faz tal comparação com a condenação dos náufragos do processo criminal maior da República (o “mensalão”). Faz-se a simbiose no preto, no pobre, na puta, nos infelizes que não sabem sequer como dedilhar um computador e chegar ao sacrossanto gabinete do presidente da Suprema Corte. Pense nisso. E sonhe com isso, porque sonhar faz parte do encadeamento de sensações a acompanharem o indivíduo desde o primeiro choro até o último lance da existência.
Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista em São Paulo.
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