domingo, 3 de agosto de 2008

Ética, mentiras e jornalismo policial

Por Milton Jung

No programa policial, o ouvinte acompanha a performance do apresentador. Homem corajoso, de voz grossa, discurso incisivo e sempre falando em defesa do cidadão. Não tem medo de ninguém. Encara os mais perigosos bandidos da cidade. “Se a polícia fosse firme como ele, não tinha gente ruim solta na rua”, repetia o ouvinte para todos que perguntavam por que estava com o rádio colado ao ouvido.
Orgulho à altura da fama do radialista, campeão de audiência. Uma das suas marcas era a conversa cara a cara com assaltantes, seqüestradores e estupradores – com esses, então, ele desfilava seu talento. Botava o entrevistado no “seu devido lugar”. Às vezes, - devido à emoção, talvez -, xingava o bandido que, preso e algemado, falava com voz humilde nem parecia o monstro que cometeu barbaridades contra o cidadão. Quando se excedia nas palavras, o apresentador pedia desculpa para o público.
O que quase ninguém sabia era que tudo não passava de uma farsa. O apresentador, no estúdio, jamais havia encarado um bandido. Nem os bandidos haviam falado com ele. As entrevistas eram gravadas pelo repórter no distrito policial, pouco antes de irem ao ar. As respostas eram editadas, ou seja, cortadas uma a uma. Ao radialista bastava seguir o roteiro e fazer as perguntas que só ele tinha “coragem”.
A “entrevista de faz de conta” já foi assunto nos corredores de várias rádios brasileiras. Sempre tem alguém para garantir que essa história foi contada pela tia do primo de um amigo do irmão dele. Eu nunca ouvi as tais entrevistas, talvez porque as rádios que sintonizava não usavam desse método para enganar o ouvinte.
Nessas conversas sobre fatos e lendas do rádio, outra história que me chamava atenção, logo que comecei a carreira jornalística, era a de um repórter de guerra que montou trincheira no quarto do hotel e de lá não saiu até o fim dos confrontos. Sua tática era simples: mandava o fotógrafo, colega de cobertura, para o campo de batalha com um gravador na mão. Assegurava, assim, a cortina sonora para os boletins que emitia por telefone, diretamente, do seu quartel general.
Os homens do rádio, como em poucos veículos de comunicação, são craques em construir imagens, tornando tênue o limite entre a verdade e a lenda. Digo isso porque nunca descobri se o “apresentador-inquisidor” ou o “repórter-de-guerra-que-não-foi-à-guerra” são personagens da criatividade radiofônica, que já proporcionou histórias hilárias, ou adaptadas da vida real.
O fato de trabalhar com um produto que mexe com o imaginário popular faz do jornalista de rádio um profissional com capacidade de transformar pela palavra. Tal recurso pode gerar situações indesejáveis. O ouvinte pode ser enganado facilmente com essa prática. A referência histórica é a versão de Orson Welles para “Guerra dos mundos”, transmitida no “The Mercury Theater on the air”, pela CBS. A adaptação do livro de Herbert George Wells para o rádio causou comoção nos Estados Unidos. Levou milhares de ouvintes a acreditar no que ouviam e enxergar cenas relatadas pelos “repórteres”, como o aparecimento de naves espaciais.
Apesar de cultivar tal habilidade, o profissional de rádio tem de submeter este talento à ética – como, aliás, todos os demais movimentos que faz na função. Não se justifica o uso de qualquer tipo de recurso que possa ludibriar o cidadão.
Editar uma reportagem leva o jornalista a decidir o que será publicado e o que vai para o lixo. Uma escolha que pode, deliberadamente ou não, interferir no pensamento do entrevistado. Uma frase colocada em contexto diferente daquele em que foi dita muda o sentido da fala.
Ao editar, deve-se ter o máximo cuidado para que o trecho escolhido esteja de acordo com o pensamento do entrevistado, sob risco de se cometer falha grave. A distorção proposital é criminosa, pois usa palavras verdadeiras para dizer uma mentira.
As duas histórias acima – verdadeiras ou não – ilustram outro tema que deve preocupar a sociedade informativa: a qualidade do jornalismo policial. A maneira como boa parte dos meios de comunicação - e o rádio não é diferente – aborda as notícias relacionadas à violência incentiva o preconceito. Troca a reflexão pela acusação, preferindo o discurso populista que costuma encontrar respaldo em parte da sociedade.
O jornalismo policial, ao contrário do que muitos gostariam, não deve ser banido da programação de rádio e tevê ou das páginas dos jornais. Dentro de padrões éticos, tem papel formador, ajuda à compreensão dos fatos e permite à mudança de comportamento. Contudo, ao explorar o avanço da criminalidade tendo o sensacionalismo como norte, o jornalista se desvia da verdade. E não há jornalismo sem verdade ou, pelo menos, sem a busca da verdade.

-------------------------------------------
Artigo disponível no site do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone (IBGF)
MILTON JUNG é jornalista e âncora do programa CBN São Paulo, da rádio CBN, e do Jornal do Terra, do Portal Terra. É autor do livro “Jornalismo de rádio”, editado pela Contexto.

Nenhum comentário: