segunda-feira, 4 de abril de 2011

Um comunismo reinventado


O chamado comunismo para chinês ver é amplamente difundido: está lá, em Karl Marx. Mas em um país como a China esse regime ganhou contornos que o fizeram ser visto como uma incógnita histórica e teórica. As particularidades do “comunismo chinês” advêm da herança filosófica secular da China, que não foi deixada de lado quando o pensamento marxista aportou por lá.
A explicação parece ser simples, mas a perseverança chinesa é maior. Os ideais comunistas passaram por um processo de absorção de outras filosofias, como os pensamentos de Confúcio, Laozi e os “daoístas” (que pode ser traduzido como “método”, “caminho”), Mozi, os legistas e também do budismo, que acabaram por construir o atual modo de pensar chinês. Portanto, é impossível compreender o pensamento chinês moderno sem buscar suas raízes no passado.
Isso acontece em função da continuidade histórica da China, um fenômeno que a diferencia de quase todas as outras civilizações do mundo e é praticamente desconhecido no Ocidente. Para os chineses, citar filósofos como Confúcio para explicar o contexto atual é tão normal e verossímil quanto citar Marx – e apesar disso parecer contraditório, no plano das ideias desta civilização ambos dialogam de modo atemporal. Isso se dá em função da rica herança filosófica que constitui o alicerce do que é “o pensar chinês”.
A China contemporânea de hoje é uma mistura de tudo isso: o valor ao estudo e ao respeito familiar é herança confucionista marcante; a apreciação da natureza e religiosidade se deve ao daoísmo e ao budismo; o forte senso comunitário vem do moísmo e, por fim, a estrutura severa das leis, do legismo. Contudo, o marxismo veio dar uma nova faceta para esses pensamentos múltiplos. Entretanto, vários mentores intelectuais propuseram um novo dao, calcado no pensamento científico ocidentalizante, para compreender os fenômenos sociais chineses.
Passadas algumas décadas, a China teve em Mao Tsé Tung, líder comunista revolucionário, que liderou a República Popular da China (1949-76, quando morreu), e gostava das análises dos autores legistas. Propunha um regime Igualitário, eles defendiam uma lei única, um Estado pesado e burocrático, algo muito parecido com o que se deu nos regimes socialistas. Mao, no início de sua carreira política, era também um intelectual bastante sensível e capacitado. Mao como economista, era apenas um bom ideólogo.
Após a morte de Mao, e de vários outros líderes, em 1976, parte importante dos antigos camaradas se foi e os pragmatistas tomaram o poder. Liderados por Deng Xiaoping – que teve o cuidado de não manchar a imagem de Mao, mas de destroçar todos os seus antigos aliados –, iniciaram-se as reformas na China, abrindo gradualmente a economia e dando espaço para o povo respirar. Esse regime novo e estranho que conjugava os ideais marxistas com uma estranha política de mercado se apresentava, pois, como uma contradição.
Tais contradições permitiram ao comunismo chinês sobreviver, enquanto a tradição pró-soviética ruiu. Estagnados pelas suas próprias burocracias, o mundo socialista ocidental não soube se reformular, enquanto a China já o vinha fazendo há alguns anos.
O comunismo chinês de hoje é, portanto, um nome para disfarçar o verdadeiro senso chinês de civilização; para os chineses, interessa atualmente só: o desejo de uma ordem cósmica e universal que permita aos seres se harmonizarem, produzirem e florescerem.

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SERGIO BARRA é médico e professor

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