sexta-feira, 16 de abril de 2010

Belo Monte em 2110


O governo insiste na construção da hidrelétrica no rio Xingu. Decorridos quase 400 anos da chegada de Castelo Branco ao Pará, a Amazônia continua sendo tratada como a escória do Brasil. Dela se leva o ouro, o ferro, a bauxita. Leva-se a madeira, o peixe, o caulim. Fica o resíduo, o deserto tropical, o crime ecológico, a morte. Geralmente, religiosos tendem a afastar questões classificadas como políticas. E a própria religião separar o Deus do culto do Deus Criador. Alguns cristãos têm dificuldade para crer porque não consideram que o Ser adorado nos templos é o mesmo que criou o Céu e a Terra. Não é o meu caso. Quanto mais estreito a vida com Deus, mais apegado fico à natureza, pois esta testifica de seu amor e poder. E quanto mais entendo a Criação, mais a política me parece intrusa neste mundo divino. É inconcebível que um cristão destrua as obras de seu Deus.
Historicamente, a Amazônia é o lugar de coleta. Primeiro, foram as conhecidas drogas do sertão. O manganês do Amapá foi arrancado durante 50 anos de seu solo. Depois, o formigueiro de ouro lamacento da Serra Pelada. As reservas naturais de florestas geram estádios de futebol diariamente. O nosso pescado é dizimado por navios estrangeiros cibernéticos à procura de camarão, que devolvem mortos ao mar toneladas diárias de nossos filhotes, douradas, pescadas... a chamada fauna acompanhante.
Se você procurar saber, encontrará legalidade em todos esses atos. Mas nem sempre o que é legal é justo, moral e inteligente. Por isso, permita-me antever com você o que os jornais escreverão sobre Belo Monte daqui a cem anos. Depois que o governo, pisando sobre a lei e sobre todos nós, conseguir realizar o leilão no próximo dia 20.
"Belém, abril de 2110. O velho Xingu se encontra morto. Após um século de construção da fatídica Hidrelétrica de Belo Monte, as águas do lendário rio atingiram o nível mais crítico. Não há mais peixes nem o menor sinal de vida em seu leito. Os milhares de pássaros que no passado habitavam seu ecossistema igualmente desapareceram.
Com o Xingu também foram embora os povos indígenas remanescentes. Em número significativo à época da construção da usina, hoje sua história se perde na miscigenação de algumas famílias que moram em cidades próximas. O megaprojeto energético não apenas atravessou antigas reservas: cortou de vez esses grupos primitivos do planeta. Sepultou em suas águas milênios de cultura.
Mas, infelizmente, o Xingu não é um caso isolado. Pelo contrário, foi justamente a partir dele que políticos da época se fortaleceram. Vencida a resistência de Belo Monte, as barragens se multiplicaram na Amazônia. Praticamente todos os grandes cursos de água foram cercados para produzir energia.
A conseqüência, todos nós sabemos e sentimos: assoreamento, morte de rios menores, furos e igarapés e sérios problemas climáticos. O ouro branco do projeto PAC, bandeira política do presidente Lula, converteu-se em assombração.
Hoje, quando a consciência ambiental ganha mais força, lamentamos amargamente experiências desse tipo. Um século de barragens e outros processos desrespeitosos da natureza fizeram da antiga e fascinante Amazônia um mundo caótico quase generalizado. Não houve respeito a nossa geração.
Todo esse estado lastimável podia ser evitado. Bastava que governantes ouvissem o clamor contrário no ano de 2010. Naquele tempo, autoridades federais já apontavam que não havia segurança para a construção da usina. Infelizmente, venceu a força política."

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RUI RAIOL é pastor e escritor (www.ruiraiol.com.br)

Um comentário:

Anônimo disse...

Faça-se uma usina nuclear.