segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Um dia igual a todos os outros

No blog Na Rede, da jornalista Ana Diniz, sob o título acima:

São cinco horas da manhã, e acordo com um som grave e repetido, que estremece o ar. O quarto está fechado, todas as janelas da casa estão fechadas. É um carro que passa devagar – um carro de passeio – o som tão alto que ultrapassa todas as barreiras.
Levanto, vou ao banheiro. Abro a torneira, ela despeja um pequeno filete e ronca. Não há água, ainda. Vou para a cozinha e começo meu dia.
Minutos depois, buzinas ásperas se intercalam com o ronco de motores desajustados de ônibus, e assim continuará por todo o dia.
Às seis e meia, vou à padaria. Ao sair, sinto um cheiro forte de urina, recém-lançada no muro, e vejo garrafas vazias e lixo no pequeno canteiro em torno de uma árvore, em frente à minha porta. Nesse canteiro, plantei lírios do vale e vindicá, na esperança de que as flores impedissem o vandalismo. Foi em vão. Como agora, desde o começo as pessoas trouxeram seus grandes cães para fazer suas necessidades ali – e permitindo que eles arrancassem as plantas, escavassem a terra e revirassem o lixo depositado à noite por um vizinho –não sei qual - que deixa seus sacos exatamente ali.
Um ciclista passa na calçada, apesar da rua ainda estar livre de carros. Leva uma criança no varão, a caminho da escola. Não tem campainha nem buzina, nem luz, nem olho de gato. Até entendo que ele escolha a calçada para proteger a criança da selvageria do trânsito. Mas ao escolher a calçada. ele expõe outras crianças que caminham para a escola, também – e não têm culpa de nada.
Chego à padaria, e o primeiro flanelinha do dia já está a postos. (Penso se foi ele que urinou no muro, e me repreendo por isso: poderia ser qualquer um, já vi pessoas melhor vestidas fazendo isso). Ele grita para o vendedor de café e de apostas no bicho que assumiu o seu ponto na esquina fronteira, indiferente aos que dormem nas casas fechadas. Na padaria, uma fila já cansada se move em silêncio pelo balcão. Na volta, cruzo com pessoas igualmente silenciosas a caminho do trabalho.
Faz calor, agora, e vou cuidar das pequenas coisas do dia, nas ruas próximas. Tenho que desviar de cadeiras e mesas lavadas a céu aberto, um rio de espuma de sabão no chão, cobrindo meia quadra: uma sorveteria e um bar não se importam a mínima com a ginástica dos passantes tentando proteger os sapatos – e não escorregar.
Na frente da agência do banco, três camelôs armam suas barracas, abrem as cadeiras e ocupam a calçada. Um homem chega conduzindo um longo carrinho de mão: sobre ele, duas grandes e sujas vasilhas cheias de comida e um fogareiro a carvão, assando espetinhos. Ele pára, vende dois para motoristas de táxi que, depois de comerem, atiram fora o espeto e o saquinho de plástico que continha a farinha. Direto na valeta da calçada, onde já se encontram outros restos.
A fila dos idosos esperando a agência abrir é grande. Penso que os bancos conseguiram transformar privilégio em exclusão – a preferência, aqui, significa isolamento.
No supermercado, a conta dá uma fração de dois centavos. A moça do caixa arredonda: ela não tem troco, há muito tempo as moedas de um e dois centavos desapareceram de circulação. Não há dessas moedas no supermercado; pensando bem, há muito tempo eu não vejo uma delas, em lugar algum. O embalador ignora minha recusa em usar os sacos plásticos. Uma mulher espera que a caixa termine de contar uma fofoca para a supervisora e a atenda.
Atravesso a faixa, uma bicicleta passa raspando por mim. Olho a rua, há pelo menos meia dúzia de tipos mal encarados circulando por ali. Alguns estão claramente drogados. Um casal muito jovem está deitado na calçada, sobre papelão. São dez horas da manhã – penso que estão fazendo de propósito, para provocar encrenca.
Um carro de polícia passa devagar, e pára diante dos sinais exagerados que lhe faz um segurança que acabou de largar o serviço. Eu presto atenção. O rapaz sai correndo pelo meio da rua – a viatura está na faixa do meio – abre a porta e se atira para dentro. O carro vai embora sem incomodar ninguém. O segurança é, provavelmente, um policial fazendo bico – e, claro, quem ajuda amigo é.
No mesmo momento, um ônibus pára a cinco metros do acostamento, despeja seus passageiros, pega outros – todos saindo no meio dos carros, sem nenhuma estranheza.
No cruzamento próximo, buzinadas e xingamentos. Um agente de trânsito, indiferente ao que se passa, multa tranquilamente os carros estacionados na calçada, um após o outro.
O dia vai, e chega a noite. Recebi uma conta dobrada da companhia telefônica (mesma data, mesmo valor, mesma emissão, mesmo tudo); um convite todo amassado, tal a perícia com que o carteiro o colocou na caixa do correio; e o “restaurante” fronteiro começa a testar o som para mais uma noite de barulho e música ruim.
Cidadania? A gente vê na tevê...

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