sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Réquiem para o último quintal

FRANCISCO SIDOU

Li, certa feita, em alguma biblioteca pública, quando estudante, um livrinho delicioso intitulado "A cultura do quintal". Já procurei na internet e não consegui localizar nem o título do livro, nem seu autor. O Alfredo Garcia, poeta e escritor paraense (dos bons), tem uma obra nesse gênero, salvo engano. Talvez ele possa ajudar os leitores do Espaço Aberto dando uma "canja", pois não?
Pois bem. A leitura daquele livrinho me foi de grande valia na juventude. Aprendi, por exemplo, que as crianças que brincam (brincavam...) no quintal são mais alegres e saudáveis. O contato com a natureza lhes faz tão bem que elas se tornam adultos mais cordiais, inteligentes e sensíveis. Tive essa valiosa experiência na infância. Nossa casa no interior tinha um quintal que era um verdadeiro pomar e ainda dava para o rio, onde havia um porto de pequeno porte com um trampolim, no estilo "toboágua" de hoje, onde a garotada se divertia a valer, pulando e saltando naquela piscina natural. Era uma festa.
Meu pai era um ecologista nato, numa época em que ainda não se falava em ecologia. Não tinha instrução acadêmica, mas possuía grande sensibilidade e respeito no trato com a natureza. Ele costumava dizer que o homem insensato é aquele que destrói a fonte de seu próprio sustento. Alguém tem alguma dúvida disso nos "tempos modernos", em que o desmatamento feroz ameaça transformar a Amazônia em imenso deserto?
Essas recordações me vêem à mente depois de ler na coluna "Tutti Qui", em O LIBERAL de domingo passado, que o último quintal de Belém brevemente vai virar mais uma "torre de marfim"; aliás, desculpem, de tijolo, cimento, ferro, vidro e aço... O Palacete Faciola, na Almirante Barroso, é o "último dos moicanos". O imóvel ocupa imensa área verde, incluindo o enorme quintal, um verdadeiro sítio dentro da cidade. Foi desapropriado pela Prefeitura de Belém, na gestão do Edmilson, que ali pretendia construir um asilo para doentes mentais... Quem sabe não seria o caso de "internar" os autores dessa insana transação imobiliária! De torre em torre, a cidade vai crescendo verticalmente, em ritmo frenético, com a construção desvairada de novas muralhas de cimento e aço, que estão "matando" os pulmões da cidade.
Até quando iremos assistir, impassíveis, à destruição da vida na cidade, que vai se transformando em imensa ilha de calor? Um dos últimos "sítios" de Belém, também destruído sem dó nem piedade, foi o da casa que pertenceu à professora Annunciada Chaves, que se orgulhava de receber os amigos e alunos em seu belo quintal, na Rui Barbosa, em memoráveis tertúlias literárias, onde se respirava oxigênio, inteligência e cultura.
Outro "sítio" dentro da cidade, também destruído pelas picaretas da insensibilidade, foi o antigo Palacete Chermont, na Governador José Malcher com Almirante Wandenkok.
Também tinha um belo quintal, cheio de árvores frutíferas. Lembro que escrevi, na época, um artigo inflamado em O LIBERAL, clamando ao Ministério Público do Meio Ambiente (?) que fizesse "alguma coisa" para evitar mais esse crime ambiental contra Belém. Não houve retorno. Também pudera... Era julho em Belém. A cidade estava vazia. Clima favorável à prática de delitos com a tranqüilidade dos que têm certeza de que ficarão impunes. Os "fiscais da Lei" também vão à praia...
No caso do Palacete Chermont, o crime foi anunciado. Nas caladas da noite, alguns "agentes", empunhando picaretas, derrubavam as paredes do velho prédio para evitar que ele fosse "tombado". Na verdade, acabou tombando, levando não só mais um pedaço do verde, mas também as esperanças daqueles que ainda acreditavam em alguma providência das "autoridades competentes"...
E assim a cidade vai "crescendo". De torre em torre, Belém vai ficando totalmente "asfixiada", porque o vento que vem da natureza exuberante que a rodeia vai sendo aos poucos impedido de entrar na cidade pelas "muralhas" erguidas pela ambição desvairada e pela insensibilidade abissal dos empreiteiros, incorporadores e vendedores de sonhos consumistas, que acabam destruindo as "pontes" com a natureza e a vida.
Parodiando o livro famoso "Por quem os sinos dobram", de Ernest Hemingway, diria que os sinos também dobram pelos insensatos filhos de Belém que, em nome de um falso progresso, estão destruindo, junto com as áreas verdes, a bela cidade em que vivemos e amamos.
Ai de ti, Belém, se não reagires a tempo de evitar o pior!

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FRANCISCO SIDOU – que o blog acolhe com satisfação – é jornalista e estará por aqui regularmente, às sextas-feiras, com um amplo espaço à disposição para brindar os leitores com artigos como esse.

5 comentários:

Anônimo disse...

Oportuna, sensível e belíssima estréia.

Nilson Vieira

Anônimo disse...

Caro Paulo,

não sou paraense. Conheci Belém em dezembro de 1976. Do aeroporto para a casa de amigos, o trajeto pela Almirante Barroso, o incrível "entrar" na cidade, tarde da noite, pela Av Nazaré. Mais do que as mangueiras, o impacto era da brisa e do cheiro de jasmins!

Na manhã seguinte o calor era dentro da casa. Na rua - na José Malcher - o tempo era leve, apesar do sol ardente. Sorvete na Cairú, a chuva da tarde - tão folclórica para mim - passou a ser o relógio dos compromissos vespertinos.

Depois, 15 anos no sul do Pará e vindas muito esporádicas a Belém. Mas, ano a ano algumas diferenças eram perceptíveis. Um edifício ali, umas árvores tombadas acolá.

Quatro anos de volta a São Paulo, entre 1992 e 1996, e então a moradia permanente aqui.

Sinto dia a dia o agravo do clima, a ausência do vento. Cheiro de jasmins? Foram-se com os quintais, à exceção de poucos resistentes, das casas da Cidade Velha.

Eu não sei se amo esta Belém. Detesto a cidade árida, a "nova Duque". Sofro os desumanos serviços que nos oferecem. O barulho infernal. A desordem urbana. A estufa a que nos reduzimos. Desprezo a "elitezinha" que, satisfeita da vida medíocre que cultiva, coonesta o nosso vil atraso.

Não sei se amor é isso. Acho que meu sentimento em relação á cidade hoje é uma mistura de resistência, nostalgia e raiva.

Ai de ti, Belém. Ai de nós.

Abração.

PS: começo a melhorar da crise da coluna. Acho que, em parte, devo isso à prece dos leitores do Espaço, já que tenho tido tempo demais pra desabafar por aqui!

Poster disse...

Olá, Nilson.
Que prazer revê-lo novamente por aqui.
Pois é.
Sidou é um craque.
E ainda virá mais coisa boa, por aí, com certeza.
Abs.

Poster disse...

Pois é, Bia.
A Belém dos vizinhos sentados na porta no fim de tarde, a Belém dos quintais, a Belém dos apanhadores de manga - cada vez mais raros -, a Belém que mistura um ar de metrópole (distante, embora) aos hábitos de proximidade entre as pessoas que o provincianismo permite - isso tudo está se acabando.
É uma pena.
E que bom que você está melhorando.
Força total!
Grande abraço.

Anônimo disse...

Pois é, Paulo

O Espaço Aberto é leitura obrigatória e diária para mim. Ou seja, mesmo quieto eu estou sempre na área.

Sds,

Nilson Vieira