Cesar Benjamin escreve aos sábados, sempre a cada 15 dias, na Folha de S.Paulo.
Seu artigo do último sábado é muitíssimo interessante. Tem o título de “Tomara que seja linda”. Leia. Depois do artigo, haverá comentários do Espaço Aberto:
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É deveras impressionante o lixo ideológico que a imprensa tem produzido ao cobrir a Olimpíada. Em geral, os repórteres buscam sempre os ângulos mais negativos, mesmo à custa de adentrar o ridículo. Vi coisas incríveis.
O locutor ressalta o caráter repressivo do regime chinês, enquanto as imagens mostram, como prova disso, um grupo de guardas de trânsito e câmeras de televisão que monitoram avenidas. O locutor fala do controle do Partido Comunista sobre as pessoas, enquanto na tela aparecem torcedores que preparam uma coreografia. Manifestações com menos de cinco indivíduos são tratadas como acontecimentos épicos. Se houver um pouco maiores, é a prova de que o povo está contra o governo. Se não houver, é a prova de que a repressão é terrível.
Ideologias não se subordinam a fatos. Elas criam fatos e se realimentam de suas criações. Formam sistemas fechados. Por isso, a China não tem saída: aconteça o que acontecer, faça o que fizer, é culpada. Se fizer o bem, é por dissimulação. Ela é má.
Atletas americanos desembarcaram em Pequim usando máscaras contra a poluição, mas tiveram azar.
Nesse dia, excepcionalmente, o ar na capital chinesa estava mais limpo que o de Nova York, de onde haviam partido. Apoiamos essas grosserias como se fossem gestos nobres.
George W. Bush, que praticamente não havia saído do Texas até se tornar presidente dos Estados Unidos, acredita que os chineses só não praticam maciçamente o cristianismo porque o governo deles não deixa. Ignora uma civilização que tem 7.000 anos de história. Ela construiu uma sofisticada visão do homem, do mundo e do cosmo, nem melhor nem pior do que a nossa, mas diferente, e sem a qual a existência humana seria muito mais pobre.
Repórteres monotemáticos escrevem todos os dias sobre falta de liberdade de expressão, carregando nas tintas, para cumprir a pauta que receberam dos chefes. Se não a cumprirem, serão demitidos. Defendem, pois, uma liberdade que eles mesmos não têm. "Os chineses estão perplexos com tantas manifestações contra o seu regime em todo o mundo", escreveu um deles, sem se importar com o fato de que em nenhum lugar tem havido nenhuma manifestação relevante.
Perplexos estamos nós, pois a China não nos obedece mais. Sua economia será maior que a dos Estados Unidos em 15 anos. Dos 200 milhões de pessoas que deixaram a pobreza na última década, no mundo, 150 milhões são chinesas. O Estado é forte, mas isso não quer dizer que seja ilegítimo. Se ainda fosse fraco, como já foi, lá continuaria a ser o lugar dos negócios da China.
Tamanhas mutações e tão complexo processo de desenvolvimento, em curto período, em uma sociedade que há pouco era paupérrima, com 1,3 bilhão de pessoas, não se fazem sem grandes contradições e problemas, que ninguém desconhece, muito menos os próprios chineses. Onde não foi assim?
As civilizações ocidentais, como se sabe, só usam a violência em benefício das vítimas. Reduzimos os índios do Novo Mundo à servidão, mas foi para cristianizá-los. Escravizamos os africanos, mas foi para discipliná-los pelo trabalho. Estamos massacrando os iraquianos, mas é para ensiná-los a ser livres. Nossa próxima missão, pelo que vejo, será libertar os chineses de si mesmos.
O problema é que eles são muitos.
Estão cada vez mais fortes. E não desejam deixar de ser o que são. Isso nos assusta. O resto é empulhação.
Agora que os Jogos começaram, torço para que o lixo ideológico se retraia, para que finalmente possamos prestar atenção nos atletas de todo o mundo. A festa lhes pertence.
Tomara que seja linda.
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Do Espaço Aberto:
César Benjamin, jornalista e editor, tem 53 anos.
Cientista político por formação, também é acadêmico e pesquisador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), com trabalhos nas áreas de política ambiental e economia. Tem o título de doutor honoris causa pela Universidade Bicentenaria de Aragua, na Venezuela.
Militou na luta armada e foi preso político nos anos 70. Chegou a cumprir pena no presídio da Ilha Grande, no Rio. Com a Lei da Anistia de 1979, voltou à atividade política e ajudou a fundar o PT. Em 1989, coordenou a campanha de Lula à presidência, quando o petista foi derrotado por Fernando Collor. Rompeu com o partido ainda em 1995.
Por que é interessante o artigo de Benjamin? Porque, aproveitando quase todas as suas palavras que iniciam o artigo, é deveras impressionante o lixo ideológico que certos intelectuais têm produzido ao cobrir a Olimpíada.
Quantos anos, por exemplo, tinham Benjamin em 1970? Quinze ou 16, por aí. Já estava, portanto, bem madurinho, bem grandinho para compreender certas coisas. Hoje, com 53, lembra-se perfeitamente de 1970.
Em 1970, o Brasil foi tricampeão mundial de futebol. Trouxe pra casa, em definitivo, a Jules Rimet. Era a época do “90 milhões em ação / pra frente, Brasil / do meu coração”. Lembram-se?
Era a época do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Lembram-se?
Era a época do “milagre econômico”. Lembram-se?
Era a época do “integrar para não entregar”. Lembram-se?
Benjamin seria capaz de achar, à época, que era lixo ideológico se alguém escrevesse que o Brasil tricampeão de futebol, o Brasil de Pelé, Tostão e Rivelino, o Brasil do milagre econômico, o Brasil dos índices espetaculares de crescimento era também o Brasil da luta armada de um lado e da tortura de outro?
Benjamin seria capaz de achar, à época, que era lixo ideológico se alguém escrevesse que o Brasil tricampeão de futebol, o Brasil de Pelé, Tostão e Rivelino, o Brasil do milagre econômico, o Brasil dos índices espetaculares de crescimento era também o Brasil da censura – prévia, inclusive - à Imprensa?
Benjamin seria capaz de achar, à época, que era lixo ideológico se alguém escrevesse que o Brasil tricampeão de futebol, o Brasil de Pelé, Tostão e Rivelino, o Brasil do milagre econômico, o Brasil dos índices espetaculares de crescimento era também o Brasil do AI 5, das “eleições indiretas”, das liberdades torpedeadas?
Benjamin seria capaz de achar, à época, que era lixo ideológico se alguém escrevesse que o Brasil tricampeão de futebol, o Brasil de Pelé, Tostão e Rivelino, o Brasil do milagre econômico, o Brasil dos índices espetaculares de crescimento era também o Brasil de intelectuais como ele – perseguidos, escorraçados, monitorados, vigiados e colocados no índex do regime?
Benjamin seria capaz de achar, à época, que era lixo ideológico se alguém escrevesse que o Brasil tricampeão de futebol, o Brasil de Pelé, Tostão e Rivelino, o Brasil do milagre econômico, o Brasil dos índices espetaculares de crescimento era simplesmente uma ditadura?
Pois é.
A China de hoje é uma potência econômica.
A China de hoje recepciona maravilhosamente os que a visitam.
A China de hoje oferece um notável esforço para vencer o isolamento a que ela própria se condenou.
A China, uma potência econômica, oferece um espetáculo maravilhoso nestas Olimpíadas – de organização, de luzes, de cores, de pontualidade, de perfeição.
A China ofereceu ao mundo o que talvez tenha sido, sem esforço algum de avaliação, o mais belo espetáculo já visto numa abertura de Olimpíada, em toda a História dos Jogos Olímpicos.
Isso é uma China.
A outra China é a China da ditadura, que cerceia liberdade, que mata aqueles que condena e obriga os pósteros do morto a pagarem as balas compradas pelo Estado. É a China que esconde coisas inacreditáveis, como informar sobre o estado de saúde de um acrobata que sofreu um acidente.
Uma coisa foi torcer pela Seleção Brasileiro tricampeã. Outra coisa era estar consciente de que vivíamos numa ditadura.
Uma coisa é achar lindas as Olimpíadas e extasiar-se com a perfeição com que foi organizada e em que transcorre. Outra coisa é não esquecermos que a China, promotora do evento, precisa abrir-se para a liberdade. Precisa deixar – vejam só – que seus cidadãos usem livremente a internet. Só isso, pelo menos.
E o resto?
O resto, como diz Benjamin no final de seu próprio artigo, é empulhação.
Como se vê, há lixos e lixos ideológicos. Cada qual escolhe o seu.
Como se vê, há empulhações e empulhações. Cada um escolhe a sua.
Mas fatos são fatos.
Era fato que o Brasil da época em que Benjamin militava na luta armada era uma ditadura. Uma ditadura que nos permitia – quem sabe até Benjamin, à época, não se permitiu tal “excesso” – vibrar com as jogadas geniais de Pelé, Tostão e Rivelino, vibrar com os gols de Jairzinho, o Furacão da Copa.
É fato que a China deste início do Século XXI é uma ditadura. Uma ditadura que nos permite extasiar-nos com a beleza destes Jogos Olímpicos.
Fechar os olhos para o Brasil ditatorial daquela época não seria alienação?
Fechar os olhos para a China ditatorial de hoje não é seria alienação?
Não será verdade, por tudo isso, que há empulhações e empulhações, há lixos ideológicos e lixos ideológicos?
Hein, doutor Benjamin?
3 comentários:
Gooooooooooooooooooooooooooooool do Espaço Aberto!!!
Parabéns pela apreciação equilibrada e isenta.
O resto, como o próprio texto bem ressalta, é empulhação e lixo rançoso sem isenção.
Espaço Aberto 10 x 0 Ranço
Nessa perlenga, cada um puxando a sardinha pra seu braseiro, pouco se fala em punir os "guerrilheiros" que explodiam bancas de revistas, sequestravam aviões e pessoas, mataram "em nome da luta" e vai por aí.
Não deveriam, também, ser punidos ?
Os familiares das vítimas deles não mereceriam uma pensão do governo ?
Perfeito! Esse é discurso hipócrita deles. Desgastado, ultrapassado e empulhador. Congratulações!
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