Por Luis Eduardo Patrone Regules
A Amazônia tem presença garantida nos noticiários nacional e internacional em razão de assuntos de inegável relevância política, social e jurídica. Emergem deste debate questões extremamente sensíveis para o país como a devastação da floresta amazônica, a defesa dos direitos indígenas e o combate à biopirataria. Percebe-se a preocupação do governo brasileiro e de setores da sociedade com a atuação das ONGs (organizações não-governamentais) naquele vasto território dotado de riquezas biológicas e culturais singulares.
No final de junho deste ano, a imprensa noticiou que o governo adotará um pacote de medidas para controlar a atuação das ONGs na Amazônia e impedir a biopirataria que, em síntese, representa a apropriação indevida de recursos biológicos e conhecimento indígena por empresas multinacionais e instituições científicas, bem como a obtenção de patente para o uso desses recursos .
Uma dessas medidas já foi instituída pelo governo. Trata-se da Portaria 1.272, de 3 de julho de 2008, editada pelo Ministro da Justiça, que dispõe sobre o recadastramento de organizações estrangeiras sem fins lucrativos.
Referido instrumento normativo se destina, conforme expõe o próprio Ministério da Justiça, a aperfeiçoar o controle da atuação de organizações estrangeiras de interesse coletivo com atuação no Brasil. O que o governo tem em mira é, sobretudo, a defesa da Amazônia no sentido mais amplo – ambiental, econômico, cultural, científico e do conhecimento humano.
A Portaria 1.272/08 estabelece o prazo de 120 dias para que todas as ONGs estrangeiras autorizada a funcionar no Brasil apresentem o pedido de recadastramento junto à Secretaria Nacional de Justiça. São exigidos documentos e informações que devem instruir o pedido de recadastramento, como o inteiro teor do estatuto e a ata de deliberação que autorizou o funcionamento da organização estrangeira no Brasil (artigo 2°).
Conforme prevê a portaria em tela, a omissão ou falsidade das informações ensejará o indeferimento do cadastramento e cancelamento da autorização de funcionamento, sem prejuízo das demais sanções cabíveis (artigo 5°).
É razoável supor que o Estado deva coibir os abusos na utilização do patrimônio ambiental, científico e do conhecimento em nosso país. Não importa se a violação à ordem jurídica decorre de uma empresa, de determinada autoridade ou órgão público, ou ainda de uma ONG (estrangeira ou nacional).
O que interessa ao país, a nosso juízo, é a adoção de instrumentos legais, normativos e de gestão claros e eficientes para a erradicação ou, ao menos, a sensível redução desses problemas graves que em parte se originam da débil presença do Estado e do incipiente controle social em extensas porções territoriais.
Ademais, cumpre sublinhar que as ONGs, estrangeiras e nacionais, estão submetidas aos ditames da Constituição Federal e, por conseqüência, os seus integrantes têm assegurada a plenitude da liberdade de associação para fins lícitos (artigo 5°, inciso XVII). E aqui reside um aspecto constitucional de extrema singularidade.
De um lado, as ONGs, cada uma dentro da sua filosofia, de seu ideário, devem observar a legislação e a Constituição Federal. Por outro, a liberdade de associação deve ser amplamente respeitada por todos. Isto impede terminantemente a intervenção estatal na criação e no funcionamento das associações civis.
O recadastramento das ONGs estrangeiras que atuem no Brasil de per si não pode ser motivo de inquietação vez que o direito de uma organização em exercer atividades na Amazônia ou em qualquer área do território nacional não é absoluto e sim condicionado à observância da ordem jurídica. Não obstante, a Administração Pública, ao dar execução a esta portaria (como de resto aos demais atos normativos), deve agir com a cautela devida a fim de que as boas práticas entre as ONGs estrangeiras sejam preservadas e fomentadas, e não duramente atingidas como se contrárias ao interesse público fossem.
Em outras palavras, referimo-nos aqui à defesa intransigente do direito à livre associação que deve nortear a atuação do Estado brasileiro diante do terceiro setor.
Além disto, parece-nos imprescindível a obediência aos princípios do contraditório e da ampla defesa pelo Estado, cuja incidência, aliás, nos processos administrativos não se discute (artigo 5°, LV da Carta Magna), inclusive no tocante ao recadastramento e à autorização de funcionamento das organizações estrangeiras que atuam no Brasil.
Em nosso sentir, a equilibrada conjugação entre dois fatores se faz imperiosa: a efetiva e eficiente fiscalização estatal, nos termos da lei, da atuação em território nacional das ONGs estrangeiras e, com o mesmo ímpeto, a observância da liberdade de associação e dos princípios do contraditório e da ampla defesa pelo próprio Estado.
Essas precauções se afiguram como primordiais para o sucesso tanto das ações do Ministério da Justiça quanto das iniciativas do terceiro setor no Brasil, inclusive por intermédio de parcerias e projetos desenvolvidos por ONGs estrangeiras.
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Luis Eduardo Patrone Regules é advogado, sócio do escritório Tojal, Teixeira, Serrano & Renault Advogados Associados, mestre em direito do Estado pela PUC-SP e professor do Curso de Especialização em direito processual Constitucional na Unisantos.
Artigo disponível no site Última Instância.
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