quarta-feira, 7 de abril de 2010

Lula e Cuba

No blog Na Rede, da jornalista Ana Diniz.

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Minha amiga me olhou furiosa quando lhe disse que não acreditava que o sistema de saúde de Cuba fosse o melhor do mundo. “Simples lógica – eu lhe disse – eu não conheço os números, mas os países nórdicos têm muito mais de tudo para ter um sistema melhor. E tenho a impressão que por lá as pessoas vivem mais tempo, e com uma boa qualidade de vida”. Ela então disse que eu estava esquecendo do embargo econômico. E aí seguiu-se um discurso que ouço desde meados do século passado. Eu não discuto mais essas coisas; é inútil. Para muitos brasileiros, Cuba é uma questão de paixão. Tipo Flamengo.
Para mim, Cuba foi uma referência nos primeiros anos de vida adulta. Eu li tudo o que pude sobre a ilha, a revolução, Fulgencio Batista, os americanos, até mesmo a guerra entre a Espanha e os Estados Unidos, que começou em Havana. Mas os anos se passavam, e Fidel Castro continuava no poder. Depois veio Kennedy e o episódio da baía dos Porcos. O que me chocou naquele episódio foi o armamento atômico posto em Cuba pelos soviéticos. Foi minha primeira decepção – como Fidel Castro pôde permitir uma tal exposição do povo cubano?
Nesse meio tempo, um outro fato contribuía para aluir minha referência. O banho de sangue chileno, na instalação da ditadura por lá. Quando Fidel assumiu, os fuzilamentos em massa comandados por Che Guevara nos chegavam tingidos de idealismo. Anos depois, quando Allende morreu no palácio incendiado, e os chilenos viviam os fuzilamentos em massa, eu compreendi de repente o que Fidel fizera em Cuba. O paredón crivado de balas atrás das pessoas vendadas era igual.
Vinham notícias pelas vias clandestinas: ah, o povo cubano adora Fidel! E eu pensava: os portugueses também adoram Salazar! Porque Salazar comparado a Fidel? Por uma questão de escala: Cuba e Portugal têm quase o mesmo tamanho – cerca de 100 mil metros quadrados – uma população equivalente, e, embora Portugal não seja uma ilha, depende do mar para tudo – ou tem que pedir licença para a Espanha. E por uma questão de semelhança política: Fidel e Salazar chegaram ao poder pela via militar, e ambos foram implacáveis com os adversários; ambos fizeram belíssimas reformas educacionais e colocaram os sistemas de saúde em dia; ambos censuraram tudo o que puderam, de anúncios a tratados técnicos. Ambos eram intransigentes defensores de uma causa: Fidel, a de Cuba socialista; Salazar, a de Portugal imperialista. Ao final, ambos governaram por quase meio século. E todos dois nunca pararam de falar em democracia... de extrema esquerda, o primeiro; de extrema direita, o segundo. E eu sei que as paralelas se encontram em algum lugar.
E, depois, os auto-exilados cubanos, povoando a Flórida. E os protestos contra o embargo comercial norte-americano – imposto, aliás, pelo Congresso dos Estados Unidos. Mas os soviéticos suprem Cuba! – eu pensava. Eram de 4 a 6 bilhões de dólares por ano em subsídios embutidos em preços irrisórios e cooperação gratuita. Cuba nunca teve que pagar caro combustível, nem com o choque do petróleo. Quando a fonte secou, com a queda do império soviético, a Venezuela e a China tentaram manter o dinheiro correndo. Era muito menos, mas, ainda assim, um ou dois bilhões de dólares anuais, representam uma considerável injeção de dinheiro sem encargos.
Cuba tem área equivalente à do Estado de Pernambuco. Em 2009, a estimativa da população residente em Pernambuco era de cerca de 9 milhões de pessoas; em Cuba, 11 milhões. O orçamento de 2009 em Pernambuco foi equivalente a 12 bilhões de dólares; podemos agregar aí algo entre 2 a 3 bilhões, oriundos de recursos da União aplicados diretamente no Estado. O orçamento de Cuba, a 47 bilhões. (Fontes: sites oficiais da Fazenda cubana e do governo pernambucano). Cuba não é, pois, tão pobrezinha assim: por pessoa, Cuba pode gastar cerca de 4.200 dólares por ano; Pernambuco, 1.700 dólares por ano. É óbvio que esta comparação não tem rigor acadêmico: faço-a apenas para estabelecer um paralelo com algo mais próximo de nós. Se compararmos o orçamento de Cuba ao de Portugal, a discrepância é brutal: em 2009, Portugal orçou 161 bilhões de euros – ao câmbio de 1,46, algo em torno de 230 bilhões de dólares. Pobre Pernambuco!
Desculpem a chatice dos dois parágrafos anteriores, mas é preciso sempre dar uma olhada nos números, porque são eles que confirmam – ou não – os discursos e as intenções dos governantes.
Sim, e depois? A guerra fria terminou. Ondas democráticas substituíram o duro chão das ditaduras sul-americanas. Os países começaram a navegar: anistias, julgamentos, pensamento aberto, perdão, reparação. Comunistas hastearam suas bandeiras por todo o continente, livres enfim de quase um século de perseguição. Todos navegam, menos Cuba. Nenhuma mão estendida para a solução dos impasses: ano após ano, Fidel cobra contas como se o fato de o mundo todo não estar contra os Estados Unidos fosse suficiente para ser devedor de Cuba.
Aí Fidel sai do governo. Ainda como Salazar, unge um herdeiro. Um golpe militar derrubou o herdeiro salazarista, e os cravos sinalizaram uma nova época para Portugal. O herdeiro fidelista continua. Relatórios insuspeitos mostram a piora da condição nutricional da população (OMS), aumento da mortalidade, a redução da produção cubana (ainda ONU) e etc – um nítido caminho para o esfacelamento. Minha amiga dirá: Culpa do embargo!
Mas este bordão não cola mais. Cuba, que desde os anos 90 comercia com o mundo todo – exceto os Estados Unidos – não consegue mais aguentar a fachada socialista. Os dirigentes latino-americanos sabem disso, e cada qual do seu lado, aproximam-se para conquistar um espaço na mudança que virá rapidamente. E foi isso o que Lula foi fazer em Cuba: negociar, entrar num mercado prestes a se abrir: o financiamento de um porto de 300 milhões de dólares, uma fábrica da Petrobrás por lá, disputando espaço com a Venezuela e com o México... Não sabiam? Pois é, o governo brasileiro não explica direito. Mas os estrangeiros estão de olho, e foi ninguém menos que Mário Vargas Llosa quem informou a agenda lulista.
Nada demais, digo eu e dizem vocês, ele está no seu papel.
Pois é. Mas o caso é que havia um morto e 84 famintos presos políticos no caminho. Eles pediram ajuda a Lula. E Lula recusou. Razões de Estado? Que razões são essas, meu Deus, que se alicerçam em cadáveres? Em que é proibida a caridade de uma esperança? Aqueles homens não são assassinos, nem ladrões, nem pedófilos ou estupradores. Eles defendem uma causa e se imolam por ela. São presos de consciência, porque há, sim, uma ditadura em Cuba.
Este presidente, que foi e está sendo incapaz de socorrer corretamente o Haiti, avança sobre Cuba em busca de lucros pisoteando liberdades. E se diz estadista... Para mim, ele virou um Bush barbado – deixou os escrúpulos, a vergonha e a consciência em algum lugar no passado.

2 comentários:

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto.
Perfeito, amplo, correto, pertinente e isento.
Incomodará muita página crítica por aí...
O ranço tendencioso-apaixonado não aceita tantas verdades.
Viva a liberdade!

Anônimo disse...

A causa dos dissidentes políticos é a causa da liberdade política, ou seja, a possibilidade de haver diálogo entre homens com divergências, é claro, mas sem nunca fechar as portas ao entendimento.

Na antiguidade, os gregos sabiam disso e os bárbaros eram, para eles, os que ignoravam a política como espaço do diálogo, divergência e ulterior entendimento.

Fidel, Salazar e Lula são, sem dúvida, os bárbaros modernos, como bem lembra a lúcida jornalista Ana Diniz