sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Uma pena infamante


ISMAEL MORAES – advogado socioambiental (Twitter @ismaeladvogado)

“(...) que me tosquiem os cabelos em cruz”
(Dom Quixote, Miguel de Cervantes)

No final da Idade Média, quando se passa a história de Dom Quixote, era considerada uma pena infamante rapar em forma de cruz o cabelo do punido, marcando-o como tal, para que todos soubessem que era um condenado por onde passasse.
As punições infamantes são assim: não basta que o punido seja compungido a expiar pelo ato que lhe é atribuído. Além disso, ele deve portar um estigma e por ele ser anunciado como alguém que está cumprindo a pena a que corresponde aquele sinal, para que todos saibam disso por onde quer que ele ande. Existe, portanto, um deleite no legislador ao adotar na lei esse tipo de punição; e, no juiz que a aplica, revela-se a busca de justiçamento ou uma espécie de sadismo.
O sentimento doentio de impor sanção punitiva humilhando é tolerado nas constituições das democracias ocidentais?
Não, é claro que não. A propósito, a nossa Constituição Federal no art. 5º, inciso XLVII, alínea e determina que “não haverá penas (e) cruéis”.
Por isso que eu fiquei confuso ao deparar a notícia de que o CNJ aplicou à juíza de Direito Clarice Maria de Andrade a punição de disponibilidade constituída pelo afastamento por 2 anos do cargo como magistrada. Ora, o CNJ é composto, em tese, de juristas que representam os vários ramos da magistratura, os tribunais superiores, as casas do Congresso Nacional, o Ministério Público, os advogados (OAB), além de ser presidido pelo presidente do STF. Então, não poderia deixar de ser juridicamente correta a medida.
Mas, mesmo sem conhecer os autos, e vendo o caso por uma lógica do razoável, não tenho como compreender uma punição como essa, porque o exercício da magistratura pressupõe a preservação da integridade moral de quem a exerce. Afastar um juiz do exercício do cargo por 2 anos implica anulá-lo, apaga-lo da vida social por esse tempo. Isso o transforma em uma espécie de fantasma, de morto-vivo. Coloca-o em um limbo, porque nada poderá fazer da vida, uma vez ser vedado aos magistrados outras atividades, salvo a de professor... Mas o banido não terá estímulo para esse contato social intenso e, mesmo assim, quem contratará um professor arrastando as correntes barulhentas próprias desse banimento?
Inscreve-se na norma constitucional proibitiva das penas cruéis a deslegitimação de pena que impeça o exercício de trabalho para o qual está habilitado.
E essa proibição não consta somente na Constituição Federal e nem foi inaugurada por ela na nossa ordem jurídica. Desde 1969 que a República brasileira não admite tal modalidade punitiva ao adeir à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da  Costa Rica), cujo artigo 5º., item 2, proíbe a adoção de “penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes”.
No Manual de Direito Penal do jurista argentino Zaffaroni e do brasileiro Pierangeli, grandes nomes internacionais do Direito Punitivo, consta que há vedação constitucional visando delimitar a pena enquanto retribuição de uma culpa, sem produzir, entretanto, no indivíduo (ou uma pessoa moral, “mutatis mutandis”), algo que a deixe marcada, assinalada, estigmatizada ou reduzida à condição de marginalização perpétua, porque o juiz poderá voltar ao cargo, mas ele sempre será “aquele que foi afastado por 2 anos...”.
Sempre será considerada como “cruel”, nos termos exatos da vedação constitucional, uma pena aplicada que gerar essa espécie de estigmatização.
Não existe razoabilidade que a sociedade seja obrigada a pagar o salário de magistrado a alguém habilitado para o cargo, e não receber retorno por esse gasto. Mesmo que seja culpada, não seria mais razoável obrigar a punida a ficar em uma vara de infratores adolescentes por dois anos sob rigorosa fiscalização?
A pena aplicada à magistrada é infamante por degradar a sua condição de magistrada, com a crueldade de mantê-la no cargo, com a dignidade sendo comida pelos dias, como um Prometeu acorrentando, que teve o fígado comido pelo abutre.
A pena infamante aplicada à magistrada é também desarrazoada, porque desperdiça recursos públicos.
A pena infamante aplicada à magistrada é também odiosa, porque é uma simples forma de justiçamento, para atender grupos de pressão.
A pena infamante aplicada à magistrada é também midiática, porque por ela o CNJ busca alimentar a imprensa e, com isso, dar razão de ser à própria existência.

6 comentários:

Anônimo disse...

Muita gente queria essa pena. O problema a é outro. A impunidade. A CF foi escrita para manter a impunidade. Exemplo: trabalhos forçados seriam bem vindos, pq seria uma mão de obra barata e que diminuiria os custos de produção. Evitar excesso de habeas corpus, como o de Cacciola. Evitar a presunção de inocência, como o Stf estranhamente contrariou recentemente. Todos esses artifícios foram criados para favorecer a impunidade, o grande mal do país. Não basta punir. Tem que saber punir. Ah e reeducação, como diria Quevedo, non ecziste para irrecuperáveis - a maioria. Os recuperáveis - a minoria - teriam a pena reduzida.

Anônimo disse...

Fico pensando também na pena infamante por qual passará a outrora jovem de 15 anos, presa com 15 homens numa cela e estrupada diariamente. Por quanto tempo durará esta pena?

Anônimo disse...

Dotô, tá com dó?
Leva pra casa.

Anônimo disse...

Tinha é de tê-la afastado sem remuneração, pois pagar isso é um acinte!

Anônimo disse...

Gostaria de saber que fim teve a menina estrelada. Dela só sabemos que por ser pra lá de miserável não pode constituir um poderoso advogado.

Anônimo disse...

Curioso, ao invés de criticar a impossibilidade de demitir-se simplesmente alguém que claramente não tem condições de ser Juiz, algo que deveria ser imediatamente modificado na Constituição e só não ocorre devido ao poder corporativo dos juízes , o artigo se esmera e colocar a Juíza que agiu desidiosamente como vítima. Tal como a lâmpada que atrai os insetos, o Poder sempre encontra seus servos.