terça-feira, 3 de julho de 2012

A gravata e o cabano




ANDRÉ COSTA NUNES, do blog Tipo assim... folhetim:

Juro que não tenho nada contra a gravata. Teria menos ainda se morasse em Londres ou Curitiba. Mas convenhamos, em Belém, Manaus, Macapá, Teresina, Santarém é dose pra leão. Mesmo assim é tolerável, justo, elegante, apenas como moda ou modismo.
Cada um tem o direito de se vestir como quiser. Sári, kilt, tanga, penacho, xador, burca, bermuda e, porque, não, paletó e gravata. Alguns há que não dispensam o colete. Gosto não se discute. A liberdade é doce.
Como se disse, as pessoas são livres para se vestir como quiserem, como são os costumes, ou, ao arrepio desses mesmos costumes, enfim, como se sentirem bem. Por isso, usa gravata quem quer, como quer e onde quer.
Mas não é assim. O uso da gravata em muitos lugares públicos é pernosticamente obrigatório.
Em recepções particulares é aceitável. Se a casa é minha eu dito as regras. O Baile do Pierrô da saudosa Eneida de Moraes, no Clube do Remo é emblemático. Só se entrava vestido de pierrô, colombina ou arlequim. Ou traje a rigor. Carnaval.
É desnecessário enumerar as repartições “ditas públicas” nas quais só se é atendido se estiver de paletó e gravata. Isto, a meu ver, significa que não são tão públicas assim.
Até bem pouco tempo, qualquer funcionário público só podia trabalhar de paletó e gravata.
Loja, banco, revenda de carro, imobiliária, escritório metido a besta, também.
Eram folclóricos os paletós dos investigadores de polícia de antigamente. Mal pagos, trabalhando na rua, com paletós que o defunto era maior e qualquer camisa e gravata velhas. Marca registrada. Uniforme. De longe já se sabia quem era.
Gravata vem de croata. Mercenários que usavam lenço no pescoço para que no inverno, o frio não passasse para o peito e, no verão, para enxugar o suor do rosto.
Essa explicação, não tem a menor importância. Entrou no texto como Pilatos no credo.
Já sabemos que essa prática, que cheira a macaquice de imitação, é mero resquício colonial. É particularmente perversa no norte do Brasil, assim, como se disse, de maneira obrigatória.
Ao fim e ao cabo, o paletó e a gravata, pelo menos por essas bandas dos trópicos, no nosso caso específico, Zona Equatorial, Tórrida e Úmida, não pode ter justificativa racional.
Já se falou de elegância, moda etc. que nem sempre precisam ter racionalidade.
Pois bem, o paletó e a gravata são, por aqui, apenas aparatos não republicanos de exclusão social e, praticados sem esta intenção explícita. E com aceitação passiva e pacífica por todas as gentes, afinal, sempre estará ao alcance de todos, o que dá um falso sentimento de hábito democrático.
Mas vale a pena insistir, perverso é quando é obrigatório, para diferenciar um cidadão de outro. Aí é evidente a intenção de separação de condição social, econômica, de casta e, até mesmo étnica. Onde já se viu cabano de terno e gravata?
Se servidor público, em qualquer dos três poderes, a gravata faz parte de uma tal pompa e circunstância que o cargo requer. E isso, convenhamos, é de um saudosismo monárquico e feudal ridículo. Acontece no executivo e no legislativo com freqüência. No judiciário, sempre. Mera imposição de castas.
Em todo o mundo, não sou especialista no assunto, mas apenas observador, os trajes obedecem aos costumes, e esses, ao meio. Assim é com os beduínos, nas areias escaldantes do deserto, com os esquimós, com os africanos, com os asiáticos, com os europeus na Europa, e com os americanos no Norte.
Na Flórida, no verão, vi carteiros, atendentes e até policiais usando bermuda e tênis, enquanto, para não ir longe, em uma repartição policial, de atendimento ao público, aqui mesmo em Belém, na Magalhães Barata, uma placa determina que trajes usar para ser atendido. É expressamente proibido entrar de bermuda.
Em qualquer secretaria da Prefeitura de Marituba, também.
É permitido entrar sem gravata na Câmara Federal. No Senado, não.
Índios e estrangeiros são tolerados. Cabanos, não.
Até há bem pouco tempo, o estudante só podia freqüentar as aulas na faculdade de direito da UFPA trajando paletó e gravata.
Dizem que o Dr. Helio Castro, uma das figuras mais espetaculares e folclóricas de Belém, de quem eu tenho a honra de dizer que fui amigo, quando acadêmico de direito, resolveu contestar tal determinação dos vetustos catedráticos. Não conseguiu. Teria recorrido aos tribunais, até o STF. Perdeu. Teria concluído o curso trajando fraque e cartola. E bengala. Essa história, assim como muitas outras, careço da confirmação do Ronaldo Passarinho. Mas assim se contam e eu reproduzo. Eu disse, diz-que.
Houve em vários tempos e lugares tentativas de mudar esses hábitos servis.
Li há muito tempo um artigo do Mahatma Gandi pedindo que os indianos não usassem paletó e gravata, até para dar serviço às costureiras locais e, principalmente, frisava, esse era o traje do opressor, que não devia ser homenageado.
Pelo mesmo motivo as autoridades iranianas não usam gravata. Nem na ONU.
A China, por razões talvez outras, como economia de escala, para vestir mais de um bilhão de chineses universalizou o traje Mao. Um slack de tecido grosso, durável, de manga comprida, quatro bolsos e sem gola. Quase militar.
Por aqui, o Presidente Jânio quadros, em raro momento de sobriedade, instituiu o pijânio que em qualquer evento ou circunstância substituiria o paletó. Tratava-se de uma camisa ou bata, de tecido fino, quatro bolsos e manga curta. Ficava entre o safári e uma camisa de pijama.
Juntamente com o idealizador a moda foi apeada do poder. No meu entender, infelizmente. Não a queda do presidente, mas do pijânio, que até que era uma boa ideia.
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O traje tradicional do cabano é o calção de lona, lisa ou listrada, com perna abaixo do joelho e amarrada no cós com barbante, cadarço ou embira. Na labuta diária, torso nu. Sem bloqueador solar ou câncer de pele. Acho que tem a ver com aquela cor de coca-cola. No mais, calça de brim, Jeans, camisa de meia.
Manga comprida é traje de ver deus. Missa, culto ou festa do santo padroeiro. Coisa de tradição ditada pelo meio.
Exatamente como os outros povos.
 Chamar o cabano de pária seria exagero, mas que ele se considera inferior àquela casta da gravata, com certeza. E o que é pior, os engravatados também pensam assim.
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Conta-se que o comandante de uma esquadra inglesa a caminho das Ilhas Folklands, almirante não sei o que, diz-que, até que era “sir”, resolveu, em uma fragata fazer uma visita oficial a Belém.
Foi um alvoroço. Até o embaixador de sua majestade teria vindo de Brasília. Esvaziou-se o cais do porto do armazém um ao cinco. Teve navio cargueiro que ficou ao largo, bem longe da tal fragata. Zona de exclusão.
O governador de então, formalista e empavonado, tratou pessoalmente dos preparativos. Era preciso demonstrar que aqui nestes cafundós também tinha uma aristocracia a altura de receber um autêntico lorde inglês.
O tal almirante, dispensando os práticos da barra, entrou pelo delta do Amazonas em noite escura e, com a perfeição de um Vasco Moscoso do Aragão, de Jorge Amado, atracou com maestria no espaço que lhe foi reservado. Britanicamente na hora que marcara para a Capitania do Portos. Sete horas e quarenta e sete minutos da manhã.
Dispensaram-se, é obvio, as formalidades aduaneiras e subiu a bordo, para as boas vindas de praxe, o comandante da IV Distrito Naval e meia dúzia de oficiais superiores.
Às quinze horas deste mesmo dia haveria o grande evento. O nobre almirante iria receber, para um coquetel, as autoridades civis e a imprensa. Não se sabe porque, o arcebispo ficou de fora. Também inexplicável foi a ausência de mulheres, à exceção da mulher do governador. Talvez, com o cargo de primeira dama, fosse considerada autoridade civil.
A Casa Civil do Governo marcou o encontro para as quatorze horas na praça da escadinha do cais do porto.
O convite com o indefectível RSVP exigia passeio completo e escuro, isto é, paletó e gravata.
Isso no calor de Belém, que os locutores esportivos apelidam de canícula. Às duas da tarde!
Eram aproximadamente trinta convidados, até porque, a tal imprensa, resumia-se a um representante de cada jornal e TV.
Três jornais e duas estações de televisão. Emissoras de rádio, não foram convidadas.
Eis que chega, atrasado como sempre, um jornalista, irreverente e desafeto do governador, trajando um safári de gabardine cáqui claro, manga curta.
Viviam-se tempos de ditadura e o Governador fazia parte da nomenklatura como, aliás, todo o estafe de governo. A censura era braba e o jovem jornalista teria aprontado essa de caso pensado.
Até por chegar atrasado chamou a atenção de todos. Imediatamente o Chefe da Casa Civil, de cara amarrada, partiu ao encontro daquela figura bizarra.
Armou-se um princípio de confusão, quando providencialmente o chefe do cerimonial, nervoso, convidou a todos para embarcar na belonave. Depois do governador, é claro.
Quando sua excelência assomou o portaló de honra, fez-se silêncio, e se ouviu um solo de apito fino e trinado, que deve ser a corneta de bordo. O toque certamente tem algum significado de saudação que nenhum dos presentes soube identificar. Inclusive o oficial PM da Casa Militar.
O último a subir a bordo, pela escadinha estreita que deixava passar um por vez, foi o tal jornalista sem gravata. Quando ele entrou desfez-se a guarda formada de recepção e um oficial vendo sua credencial de imprensa foi todo amabilidades falando português escorreito, de Portugal, e o acompanhou cerrando o cortejo rumo à praça dármas. Era um salão à moda de um clube fino cheirando a pub londrino, sobriamente decorado em estilo clássico. As paredes forradas de laminados de cedro e jacarandá ostentavam, sem exagero, fotografias, uma grande tela a óleo da Rainha Elizabeth II e do Almirante Nelson e um quadro de medalhas. Aquele navio participara da invasão da Normandia.
Passado o encantamento com o lugar, o jornalista, até por dever de ofício foi se assenhoreando do ambiente. Esquivando-se dos taifeiros negros, impecáveis, que desfilavam bandejas de canapés, vinho, uísque, coquetel, divisou, em um canto mais afastado, o lorde almirante conversando sabe-se lá o que com o governador e a primeira dama.
De repente sentiu um choque. Choque mesmo, como se tivesse pisado em poraqué. Não queria acreditar no que via e, parecia que só ele se dava conta do inusitado da cena: o lorde almirante e toda a oficialidade britânica trajavam bermuda branca de linho, cinto branco, meia branca soquete, e sapatos brancos tipo mocassim, de couro ou pano. Todos impecavelmente pintados de alvaiade.
Foi a glória. Por essa ele não esperava. Instintivamente pegou um copo da primeira bandeja de crioulo que passou e bebeu de um só gole. Era uísque. Sem gelo. Não notou. Imediatamente caçou com os olhos o oficial que o acompanhara e falava português. Chegou junto, puxou um assunto qualquer, soube que o capitão era do quadro de RP da Armada de origem indiana, mais exatamente de Goa, e outras cositas mas, as quais ele não estava nem prestando atenção. Quando, em uma pausa do capitão, ele observou com displicência estudada:
- Acho que o meu governador deve estar se sentindo agachado. Ele é um prócer do novo regime militar do Brasil, e se o conheço bem ele esperava ser recebido pelos senhores com um traje mais, digamos, formal.
O jovem oficial de relações públicas ficou lívido.
- Como assim, meu senhor, não estou a entender.
- Não ligue pra isso. São idiossincrasias do Poder. Dói, mas passa.
-Não, meu senhor, isso é sério. Saiba o senhor que esse é o nosso primeiro uniforme para os trópicos. É com ele que recebemos, nas regiões quentes, é claro, Sua Majestade a Rainha. Obrigado pela observação e dê-me só um minutinho que vou já desfazer esse terrível mal-entendido. Disse isso e encaminhou-se para onde no momento estavam o lorde almirante, o governador e agora o embaixador inglês.
O repórter sacana esperou por um momento, imaginando a saia justa do governador, enquanto o oficial RP, depois de uma breve conversa reservada com o Almirante e o embaixador, começou a dar as devidas explicações a sua excelência.
Não demorou muito e o olhar do governador cruzou com o seu como um raio. Se o fosse, de fato, ele estaria fulminado. Apenas, em resposta, levantou um brinde, agora uma taça de champanhe e, lentamente foi-se encaminhando para a escada da saída.
 Houve quem o visse ainda na praça da escadinha assobiando Para não dizer que não falei de flores.
Epílogo
Mesmo curupira e cabano convicto, vou continuar, eventualmente, a usar paletó e gravata. Se puder, Armani, Prada ou Ermenegildo Zegna. Por vaidade, para me sentir elegante, mais bonito, importante, babaca. Ou, tristeza maior, para ser recebido por outro cidadão que deveria ser igual a mim, mas tem o poder de exigir de outro cidadão, o uso de paletó e gravata.

2 comentários:

Marise Rocha Morbach disse...

Ótimo texto do André Nunes.

Tereza Jardim disse...

Da mesma forma, não compreendo os olhares curiosos quando, sob uma sombrinha da minha coleção, abro um dos meus leques e me ponho a aliviar o calor durante as caminhadas sob sol escaldante da cidade.